quarta-feira, 5 de março de 2014

É preciso avaliar caso a caso


Em uma entrevista para o Corriere della Sera, o papa disse que o "matrimônio é entre um homem e uma mulher", mas que "é necessário regulamentar outras formas de coabitação em virtude de aspectos econômicos, tais como planos de saúde. É preciso avaliar caso a caso."


Por uma nova experiência de transformação


Sempre acreditei que todos nós LGBTs estivéssemos ligados intrinsecamente por meio do sofrimento que enfrentamos em nosso processo de aceitação. Mas refletir sobre um texto me levou a perceber que descobrir o que realmente nos liga pode mudar nossa percepção de identidade e justiça.

No dia 21 de fevereiro, a queridíssima companheira Ivone Pitta publicou em seu blog um texto tão bonito quanto instigante, cujo título é “Apenas um Aniversário” (aqui). Ao lê-lo, me identifiquei imediatamente com a história e decidi deixar um comentário breve acerca daquilo que eu havia percebido como pontos mais importantes. Mas senti que eu poderia colaborar um pouco mais e daí nasceu o presente texto, onde estendo as ideias que levantei a partir do relato de Ivone.

Segue seu texto:
“Há pouco mais de 20 anos conheci minha primeira namorada. Eu católica daquelas de sábado e domingo na igreja, homotransfóbica, tímida daquelas de ter vergonha da própria sombra, ela com o namorado, na festa de aniversário de uma amiga em comum. E o que seria apenas um aniversário como tantos outros, tornou-se um marco divisório em minha vida.

Nos vimos logo após minha chegada, olhamos uma para a outra: olhos brilhantes, sorrisos rasgados. Havia algo diferente. Olhei pro céu e implorei para o deus no qual eu ainda acreditava que não fosse verdade aquilo que eu estava sentindo. Ela, mais corajosa e sem as mesmas amarras, fez a aproximação que eu desejava mais que tudo naquele momento.

Começamos a namorar 20 dias depois e eu hoje nem lembro por que razão há esse intervalo, mas lembro que durante a primeira semana de namoro eu ligava para ela pela manhã para terminar a relação que implantaram dentro de mim ser errada, pecaminosa, anormal, doentia, mas que a noite estava mais feliz do que jamais havia sido, estando na companhia dela.

Ela ter suportado minhas crises de homofobia internalizada fez toda diferença para tudo o que veio depois entre nós e para que eu me tornasse quem sou hoje. E aqui penso como nós LGBTs não vivenciamos nossa adolescência, juventude e até a vida adulta como quem se alinha bem à heterocisnormatividade, como somos reprimidos, agredidos, violentados emocional e simbolicamente. E me emociono em pensar no que tive de vencer em mim mesma nestes últimos 20 anos até chegar nesta militante que vocês veem hoje. E choro de gratidão e amor por minhas amigas mais próximas, tão importantes e essenciais nessa caminhada de aceitação, reconstrução e fortalecimento.”

Minha história se confunde com a dela. A descoberta do amor aos 20 e poucos anos, a prática do catolicismo paroquial que me tirava do mundo aos finais de semana e o extremo medo e raiva dos gays, lésbicas, trans e toda sua corja de depravados. As histórias de muitos de nós, católicos que se descobrem gays, encontram eco nesse relato. A dicotomia constante com retoques de transtorno bipolar: longe da pessoa amada sobrevinha a sensação de erro, pecado, anormalidade, doença; ao lado dela, amor, companhia, segurança.

Talvez por ter lido tantos relatos como este, desenvolvi uma crença de que todos nós gays estamos de alguma forma conectados uns aos outros por termos experimentado, ao longo da nossa trajetória, o sofrimento de extrema exclusão gerado pela homofobia interna e/ou externa. Esse sofrimento tornou-se, para mim, como que uma insígnia, uma distinção, um elemento que ao mesmo tempo em que nos marca e nos separa de tantas pessoas importantes, nos une a outras. Ele fez com que nós nos organizássemos em associações e reivindicássemos voz e direito no campo social, e em torno dele se erigem discursos afirmativos que hoje começa a mobilizar uma parcela da sociedade que não tem ligação direta com esse sofrimento. Em outras palavras, no caminho transcorrido até aqui, nossos sofrimentos individuais e coletivos enquanto LGBTs tem sido o pilar central da nossa unidade ideológica. E no tocante a nós, católicos gays, identificar a Igreja como uma das principais instituições por trás da construção histórica do preconceito faz com que nossos sofrimentos individuais se relacionem com a crença num Deus impossível, que não me amava, que não era próximo a mim, que não havia me criado como eu sou.

Mas as nossas histórias não pararam aí. Uma espécie de força de vida nos fez caminhar para fora da condenação e nos conduziu em direção a um autoconhecimento. Somente partir daí é que o amor a mim mesmo e ao outro se tornou possível. No entanto, se lançarmos um olhar mais profundo sobre essa tal “força de vida”, poderemos perceber que ela é formada por muitos níveis. Em sua periferia habitam experiências da minha própria história e da história de outros que de alguma forma comigo se relacionaram. Lembro-me das falas relativas a um parente assumidamente gay que, mesmo condenado por diversas vozes importantes da família, insistia em ser uma referência de liberdade exótica para mim. Ou a estranha imagem do casal gay que foi vizinho nosso e de quanto incomodava ao condomínio o carinho que demonstravam ter um pelo outro. Num nível mais interno, percebo que essa “força de vida” é formada por exemplos de liberdade verdadeira que podiam vir, inclusive, de pessoas infelizmente homofóbicas, como meus parentes. A luta dos meus pais para que eu tivesse acesso a uma educação que me permitisse olhar o mundo com olhos de quem quer ser livre, os torna também parte dessa força. Ainda mais por dentro dessa força, encontramos as experiências de verdadeiro afeto, carinho e amor que muitas pessoas tiveram para conosco, como algumas avós que insistiam em nos amar de tal maneira como se quisessem nos mostrar que nós poderíamos ser verdadeiramente felizes. Em especial, lembramos também daqueles que conosco se relacionaram afetivamente quando ainda não nos aceitávamos. Sua paciência e dedicação nos deram a perceber a natureza de um amor verdadeiro, pois foram capazes de suportar nossas intensas crises de autocondenação.

Observar com mais cuidado como essa não tão óbvia rede de personagens atuou na construção e manutenção daquilo que chamei de “nossa ‘força de vida’”, me faz perceber que meu caminho em direção à aceitação não foi tão sem referências quanto eu imaginava. Se como diria Eric Fromm "a principal tarefa do ser humano nesta vida é dar a luz a si mesmo", pode ser que meu nascimento em direção à autoaceitação tenha se baseado numa importante rede de condições de possibilidades e que, dada sua intensidade, foram capazes de semear em mim o gérmen de uma coragem irredutível e, sobre certos aspectos, inexplicável. Hoje, vejo essa mesma força nos fazendo assumir com tanto orgulho a grandiosidade da nossa sexualidade, nos fazendo querer ser pessoas melhores para o mundo, nos fazendo querer ajudar aqueles que estão passando por esses mesmos sofrimentos, nos fazendo lutar por uma sociedade mais justa, nos fazendo optar pela verdade em todas as circunstâncias. Essa força nos motiva e nos faz acreditar no bem, na liberdade do amor, nas verdades inscritas em nossas consciências, na felicidade ímpar em ser você mesmo.

Assim, poderia arriscar uma nova luz sobre aquilo que nos liga enquanto gays: hoje, eu creio que é essa “força de vida” que nos conecta verdadeiramente, inclusive mais do mais que os nossos sofrimentos pessoais e coletivos. O que dá coesão às nossas histórias e as conectam entre si é muito mais o nosso nascimento para uma nova e verdadeira vida do que a dolorosa morte que o precedeu. Porque todo sofrimento foi enfim justificado é que podemos dizer que nossa luta não foi somente contra a sociedade, ou contra a igreja, ou contra nossos pais, foi contra o que nós mesmos acreditávamos e contra toda a estrutura de poder que internalizamos. Mas nossa batalha não foi tão solitária: diversas sementes estranhas aos nossos preconceitos brotaram e floresceram lindas em nossos corações, ao sabor d’um certo vento vindo não sei de onde.

Nós, os “reprimidos, agredidos, violentados emocional e simbolicamente”, como diz Ivone, poderíamos agora nos olhar sob uma nova perspectiva: porque não deixar que o testemunho de renascimento se sobreponha ao do sofrimento nos nossos discursos enquanto LGBTs? E especialmente nós, gays católicos, porque não nos tornar os vanguardistas desta postura? Proponho que troquemos a chave de nossos discursos: em vez de “nós, os reprimidos”, diríamos “nós, os renascidos”. Digo isto em defesa de um olhar que nos conectaria não apenas entre nossos iguais, mas aos nossos Outros, e que por ser tão mais útil e agregador não se trataria de um processo de enquadramento da memória, mas da percepção de que talvez as antigas lágrimas tivessem a função de regar o solo para que neste brotassem as novas sementes de uma vida, e vida em abundância.

O papel da denúncia que leva à frente os nossos sofrimentos individuais e coletivos é ainda muito importante, pois muitas violências morais e físicas precisam hoje gritar o nome de seus mortos diante de seus assassinos. Mas agora proponho um novo passo ainda mais ousado para dentro da estrutura daquela “força de vida” que eu havia mencionado. Um passo tão intenso e visceral que muitos poderiam taxá-lo de descabido, sentimental ou mesmo romântico. Proponho um passo de fé. Olhemos para o centro dessa coragem exótica que nos fez aceitarmo-nos como somos mesmo em face de toda adversidade para fazê-lo. Lá, escondido no âmago desta força, há algo que a torna viva e cada vez mais operante, tanto que descobri-la não nos paralisou em nossas memórias, mas a usamos como alimento para nossa jornada. E de tal sorte pode esta força nos cativar e iluminar que hoje me portador de uma luz para o mundo, compreendo minha responsabilidade para com uma nova proposta de civilização, onde verdadeiramente compreendamos a essência de uma velha expressão: “dar a outra face”.

Uma leitura rasa dessa expressão bíblica traz consigo o perigo de uma postura que cria uma série de “vítimas santificadas”, conceito que margeia um masoquismo hedonista. Ao permitir que nos conectemos a partir de nossos sofrimentos, estamos o convidando para compor nossa identidade, o que de maneira nenhuma poderia acontecer. Assim como aquele que dá a outra face não será elevado por ser o coitadinho indefeso, não seremos elevados por ostentarmos nosso sofrimento. E o gay católico tem a enorme responsabilidade de convidar a comunidade LGBT e a sociedade como um todo a compreender que esta expressão não defende o derrotado ferido que dá a outra face para se livrar da responsabilidade da denúncia e, talvez por sua submissão, receber a "recompensa" do "céu". A “outra face” aqui tem um sentido simbólico muito mais profundo: seríamos capazes de abrir mão em definitivo da justiça parcial – baseada nas leis que legitimam a vingança violenta – praticada pelo homem através de tantas gerações para assumirmos a responsabilidade da nova justiça proposta por Jesus – baseada na misericórdia? “Dar a outra face” é abandonar a vingança legal e a violência permitida e estabelecer princípios de justiça que faça meu coração solidário com a condição miserável do meu agressor, ainda que eu seja a vítima mais óbvia. A nossa “outra face” deve esta: misericórdia e não sacrifícios.

Abrir mão da vingança violenta legitimada desde a Lei de Talião é o passo para dentro de uma renovação poderosa não só do movimento gay, mas das estruturas desumanizadoras que, ao mesmo tempo em que o comportam, contra ele batalham. Isto porque nossas críticas às instituições de poder não podem ser nossa única palavra no campo nos quais atuamos. Como ponto de partida, elas são fundamentais, mas se nos detemos neste caminhar em direção à compreensão do ser humano em todas as suas dimensões, não conseguiremos nos solidarizar com os nossos Outros. Nosso discurso perderá sua força profética, trará frutos por ora interessantes, mas que se mostrarão inversamente discriminatórios porque estão pensados dentro da mesma lógica dicotômica na qual fomos forjados. Se restringirmos nosso olhar às nossas questões, secaremos como uma figueira amaldiçoada.

“E choro de gratidão e amor por minhas amigas mais próximas, tão importantes e essenciais nessa caminhada de aceitação, reconstrução e fortalecimento.” Não me parece à toa que Ivone demonstre sentir-se grata àquelas que estavam próximas. Este sentimento também me invade quando me lembro de tantos amigos que me apoiaram, estiveram ao meu lado, próximos a mim. E hoje convido você a revisitar sua trajetória e dar uma resposta afetiva positiva de gratidão a todos que direta ou indiretamente contribuirão para seu processo de aceitação. Gratidão poderia ser mais uma característica desta “outra face” a oferecer para o mundo, mais uma vez, não em “agradecimento” pela agressão sofrida que nos confere a confortável posição de oprimido, mas por tantas situações que nos permitem hoje sermos misericordiosos, solidários com nosso opressor para, enfim, ajudá-lo a também se libertar de sua opressão.

E finalmente, te proponho uma possibilidade. E se eu chamasse de "Deus" àquele que reside no centro de nossa força de vida? Seria apenas um nome. Mas diante de tantas conexões, de tantas novas visões e de tanto renascimento, não seria impróprio eu agradecê-lo por ter a oportunidade de conhecer e me conectar com histórias fantásticas como a de Ivone. Se abrirmos mão do sofrimento como única ligação entre nós, talvez passássemos a enxergar quão intensa é a ruptura que nós propomos, e quanto ela é capaz de oferecer outras respostas para as dores do mundo. Talvez essa nossa nova postura incentive na busca por uma justiça social verdadeira e profunda, só possível em toda sua plenitude se atrelada à misericórdia. Talvez esse lugar dispense a sua identidade, mas certamente hoje eu agradeço a Deus por essa força que você, eu e tantos outros tivemos.

Super beijo!

Pedro

Papa define pobreza como o tema da Quaresma em 2014

"Senhor, por favor me envie alguém para amar!"


Mensagem do Santo Padre para a Quaresma de 2014: 

Fez-Se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9)

Queridos irmãos e irmãs!

Por ocasião da Quaresma, ofereço-vos algumas reflexões com a esperança de que possam servir para o caminho pessoal e comunitário de conversão. Como motivo inspirador tomei a seguinte frase de São Paulo: «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). O Apóstolo escreve aos cristãos de Corinto encorajando-os a serem generosos na ajuda aos fiéis de Jerusalém que passam necessidade. A nós, cristãos de hoje, que nos dizem estas palavras de São Paulo? Que nos diz, hoje, a nós, o convite à pobreza, a uma vida pobre em sentido evangélico?

A graça de Cristo

Tais palavras dizem-nos, antes de mais nada, qual é o estilo de Deus. Deus não Se revela através dos meios do poder e da riqueza do mundo, mas com os da fragilidade e da pobreza: «sendo rico, Se fez pobre por vós». Cristo, o Filho eterno de Deus, igual ao Pai em poder e glória, fez-Se pobre; desceu ao nosso meio, aproximou-Se de cada um de nós; despojou-Se, «esvaziou-Se», para Se tornar em tudo semelhante a nós (cf. Fil 2, 7; Heb 4, 15). A encarnação de Deus é um grande mistério. Mas, a razão de tudo isso é o amor divino: um amor que é graça, generosidade, desejo de proximidade, não hesitando em doar-Se e sacrificar-Se pelas suas amadas criaturas. A caridade, o amor é partilhar, em tudo, a sorte do amado. O amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e as distâncias. Foi o que Deus fez connosco. Na realidade, Jesus «trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, 22).

A finalidade de Jesus Se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas – como diz São Paulo – «para vos enriquecer com a sua pobreza». Não se trata dum jogo de palavras, duma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! Quando Jesus desce às águas do Jordão e pede a João Baptista para O baptizar, não o faz porque tem necessidade de penitência, de conversão; mas fá-lo para se colocar no meio do povo necessitado de perdão, no meio de nós pecadores, e carregar sobre Si o peso dos nossos pecados. Este foi o caminho que Ele escolheu para nos consolar, salvar, libertar da nossa miséria. Faz impressão ouvir o Apóstolo dizer que fomos libertados, não por meio da riqueza de Cristo, mas por meio da sua pobreza. E todavia São Paulo conhece bem a «insondável riqueza de Cristo» (Ef 3, 8), «herdeiro de todas as coisas» (Heb 1, 2).

Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-Se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na berma da estrada (cf. Lc 10, 25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e verdadeira felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha. A pobreza de Cristo, que nos enriquece, é Ele fazer-Se carne, tomar sobre Si as nossas fraquezas, os nossos pecados, comunicando-nos a misericórdia infinita de Deus. A pobreza de Cristo é a maior riqueza: Jesus é rico de confiança ilimitada em Deus Pai, confiando-Se a Ele em todo o momento, procurando sempre e apenas a sua vontade e a sua glória. É rico como o é uma criança que se sente amada e ama os seus pais, não duvidando um momento sequer do seu amor e da sua ternura. A riqueza de Jesus é Ele ser o Filho: a sua relação única com o Pai é a prerrogativa soberana deste Messias pobre. Quando Jesus nos convida a tomar sobre nós o seu «jugo suave» (cf. Mt 11, 30), convida-nos a enriquecer-nos com esta sua «rica pobreza» e «pobre riqueza», a partilhar com Ele o seu Espírito filial e fraterno, a tornar-nos filhos no Filho, irmãos no Irmão Primogénito (cf. Rm 8, 29).

Foi dito que a única verdadeira tristeza é não ser santos (Léon Bloy); poder-se-ia dizer também que só há uma verdadeira miséria: é não viver como filhos de Deus e irmãos de Cristo.

O nosso testemunho

Poderíamos pensar que este «caminho» da pobreza fora o de Jesus, mas não o nosso: nós, que viemos depois d'Ele, podemos salvar o mundo com meios humanos adequados. Isto não é verdade. Em cada época e lugar, Deus continua a salvar os homens e o mundo por meio da pobreza de Cristo, que Se faz pobre nos Sacramentos, na Palavra e na sua Igreja, que é um povo de pobres. A riqueza de Deus não pode passar através da nossa riqueza, mas sempre e apenas através da nossa pobreza, pessoal e comunitária, animada pelo Espírito de Cristo.

À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança. Podemos distinguir três tipos de miséria: a miséria material, a miséria moral e a miséria espiritual. A miséria material é a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiénicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural. Perante esta miséria, a Igreja oferece o seu serviço, a sua diakonia, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.

Não menos preocupante é a miséria moral, que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros – frequentemente jovem – se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspectivas de futuro, perderam a esperança! E quantas pessoas se vêem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde. Nestes casos, a miséria moral pode-se justamente chamar um suicídio incipiente. Esta forma de miséria, que é causa também de ruína económica, anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos auto-suficientes, vamos a caminho da falência. O único que verdadeiramente salva e liberta é Deus.

O Evangelho é o verdadeiro antídoto contra a miséria espiritual: o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna. O Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e esperança. É bom experimentar a alegria de difundir esta boa nova, partilhar o tesouro que nos foi confiado para consolar os corações dilacerados e dar esperança a tantos irmãos e irmãs imersos na escuridão. Trata-se de seguir e imitar Jesus, que foi ao encontro dos pobres e dos pecadores como o pastor à procura da ovelha perdida, e fê-lo cheio de amor. Unidos a Ele, podemos corajosamente abrir novas vias de evangelização e promoção humana.

Queridos irmãos e irmãs, possa este tempo de Quaresma encontrar a Igreja inteira pronta e solícita para testemunhar, a quantos vivem na miséria material, moral e espiritual, a mensagem evangélica, que se resume no anúncio do amor do Pai misericordioso, pronto a abraçar em Cristo toda a pessoa. E poderemos fazê-lo na medida em que estivermos configurados com Cristo, que Se fez pobre e nos enriqueceu com a sua pobreza. A Quaresma é um tempo propício para o despojamento; e far-nos-á bem questionar-nos acerca do que nos podemos privar a fim de ajudar e enriquecer a outros com a nossa pobreza. Não esqueçamos que a verdadeira pobreza dói: não seria válido um despojamento sem esta dimensão penitencial. Desconfio da esmola que não custa nem dói.

Pedimos a graça do Espírito Santo que nos permita ser «tidos por pobres, nós que enriquecemos a muitos; por nada tendo e, no entanto, tudo possuindo» (2 Cor 6, 10). Que Ele sustente estes nossos propósitos e reforce em nós a atenção e solicitude pela miséria humana, para nos tornarmos misericordiosos e agentes de misericórdia. Com estes votos, asseguro a minha oração para que cada crente e cada comunidade eclesial percorra frutuosamente o itinerário quaresmal, e peço-vos que rezeis por mim. Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde!

Vaticano, 26 de Dezembro de 2013, Festa de Santo Estêvão, diácono e protomártir

Francisco

Fonte
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