sábado, 23 de julho de 2011

A patrulha do amor


O ataque dos homófobos ao pai que abraçava o filho revela o cerco àqueles que exibem afeto em público

Era uma festa de interior paulista em São João da Boa Vista. O pai, de 42 anos, abraçou o filho, de 18. Eles se veem uma vez por mês. “A gente fica no maior chamego, é a saudade”, disse o pai. Um grupo de seis homens se aproximou e perguntou se eles eram gays. O pai ainda respondeu que não. Foi desacordado por um soco no queixo. Sua orelha direita foi decepada por um dos agressores. Era um serralheiro de 25 anos que odeia homossexuais.

O serralheiro, preso dias depois, foi solto logo. E provavelmente só se arrepende pelo erro de avaliação: se pai e filho fossem um casal, teriam merecido o castigo. Ele é um entusiasta da tese defendida pelo deputado federal Bolsonaro: pais devem dar palmadas em filhos com “desvios” para “curar a doença” que está destruindo a família brasileira.

Essa legião homofóbica é muito maior do que se pensa em nosso país. Ela começa a sair do armário. Os novos direitos iguais dos gays cumprem uma função importante: mostram quem é quem. Preconceitos ficavam escondidos pela legislação discriminatória. Agora, emergem com fúria viril e religiosa. Agressões como essa e tantas outras terão de ser punidas exemplarmente, até que a sociedade se civilize e se modernize. O racismo é crime? A homofobia também precisa ser crime.

“Estava eu, meu filho, minha namorada e a namorada dele. Elas foram no banheiro. Aí eu peguei e abracei ele”, contou o pai, vendedor autônomo que vive numa chácara em Vargem Grande do Sul, cidade vizinha. O filho mora com a mãe em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. “Passou um grupo, perguntou se nós éramos gays, eu falei ‘lógico que não, ele é meu filho’. Ainda falaram: ‘Agora que liberou, vocês têm que dar beijinho’. Houve um empurra-empurra, eles foram embora, mas voltaram. Não sei se eu tomei um soco, apaguei. Quando levantei, senti. A minha orelha já estava no chão, um pedaço.” Uma mulher pegou o pedaço da orelha e colocou em um copo com gelo. No hospital, os médicos disseram que a orelha foi decepada por algum objeto cortante e muito bem afiado. “Não se pode nem mais abraçar um filho”, disse o autônomo.

Esse episódio dantesco numa festa agropecuária não choca apenas pelo ódio aos gays. Parece cada vez mais difícil ser pai amoroso quando, por todo lado, espreita a malícia alheia. Há dois anos, em setembro de 2009, um turista italiano foi preso por acariciar e beijar com “selinhos” a filha de 8 anos numa piscina pública em Fortaleza. Um casal de Brasília chamou a polícia. Estavam indignados com o “gringo pedófilo”. Ele branco, ela mais escura. A menina era filha do italiano com uma brasileira. A mulher também estava na piscina e protestou quando levaram o marido.

Pode-se entender o engano inicial numa região como o Nordeste, onde a prostituição infantil e o turismo sexual são uma tragédia quase oficial. Mas, mesmo depois de esclarecer que o italiano era pai da menina e estava com a mulher, como explicar sua detenção por dez dias de férias? Foi liberado sem pedido de desculpas. Daqui a pouco, um pai não poderá mais ajeitar o biquinizinho da filha, levar a menina ao banheiro, colocar no colo, abraçar e beijar.

Essa polícia do comportamento afetivo é dura, humilhante e cultural. Persegue sobretudo os homens. Em vários países, beijos entre heterossexuais não põem em dúvida sua masculinidade. São expressões de carinho. No Brasil, é mais complicado. Escrevi uma vez sobre o simbolismo de homens fantasiados de mulher no Carnaval. “O homem se veste de mulher porque quer ser mais afetivo de maneira escancarada, sair beijando todos, de qualquer sexo. Homem afetivo, nos outros dias do ano, é coisa de gay”, diz o psicoterapeuta Sócrates Nolasco. “É um momento do ano em que ele não precisa afirmar sua masculinidade. Mulher pode ser afetiva, carinhosa, extrovertida, e nem por isso será tachada de piranha.

Deve ser cansativo e frustrante tentar se enquadrar o tempo todo no que a sociedade espera do macho. As novas gerações de homens deveriam fazer uma revolução.


- Ruth de Aquino
Reproduzido via Revista Época, com grifo nossos

Sobre a ordenação de mulheres


Nas últimas duas semanas, a ordenação de mulheres alcançou grande relevo nos meios de comunicação, por causa de declarações inesperadas do cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Numa entrevista publicada no Boletim da Ordem dos Advogados, declarara que "teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental" à ordenação de mulheres (aqui). A recusa está baseada apenas na tradição.

A declaração teve eco em importantes órgãos de informação estrangeiros. Tanto mais quanto aparecia pouco tempo depois de um bispo australiano ter sido demitido devido à mesma abordagem do tema, e o vaticanista Andrea Tornelli fez notar que a declaração ia contra a doutrina afirmada por João Paulo II e Bento XVI.

Como seria de prever, choveram os protestos, provindos, segundo se diz, sobretudo do Opus Dei e do próprio Vaticano. As reacções, algumas de "indignação", obrigaram o patriarca a um esclarecimento, recuando. Nele, confessa a necessidade de "olhar para o tema com mais cuidado", acrescentando: "Verifiquei que, sobretudo por não ter tido na devida conta as últimas declarações do Magistério sobre o tema, dei azo a essas reacções." E reproduz a carta Ordinatio Sacerdotalis, de João Paulo II: "Declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja."

Quando se pensa, vê-se aqui a tipificação do que é na Igreja o respeito pelo direito de opinião e expressão. Depois, não se atende à vontade de tantos bispos a quem não só não repugnaria como até gostariam de ordenar mulheres. Ficou famosa a afirmação de D. Eurico Nogueira, então arcebispo de Braga: "Gostava de ver uma mulher no meu lugar".

As mulheres têm motivos para estar zangadas com a Igreja, que as discrimina. Jesus, porém, não só não as discriminou como foi um autêntico revolucionário na sua dignificação, até ao escândalo: veja-se a estranheza dos discípulos ao encontrar Jesus com a samaritana, que tudo tinha contra si: mulher, estrangeira, herética, com o sexto marido. Condenou a desigualdade de tratamento de homens e mulheres quanto ao divórcio. Fez-se acompanhar - coisa inédita na época - por discípulos e discípulas. Acabou com o tabu da impureza ritual. Estabeleceu relações de verdadeira amizade com algumas. Maria Madalena constitui um caso especial nesta amizade: ela acompanhou-o desde o início até à morte e foi ela que primeiro teve a intuição e convicção de fé de que Jesus crucificado não fora entregue à morte, pois é o Vivente em Deus.

Santo Agostinho, apesar da sua misogenia, declarou-a apóstola dos apóstolos, devido ao seu papel fundamental na convocação dos outros discípulos para a fé na Ressurreição. Aliás, já São Paulo na Carta ao Romanos pede que saúdem Júnia, "apóstola exímia".

Evidentemente, os opositores vêm sempre com aquela dos Doze Apóstolos, entre os quais não consta nenhuma mulher. Esquecem que na instituição dos Doze se trata de uma acção simbólica, para indicar que começava o novo povo de Deus. Como as mulheres e as crianças na altura não contavam, o símbolo perderia a sua eficácia, se se falasse também de mulheres entre os Doze.

E também se diz que na Última Ceia não houve mulheres. Ora, esta afirmação é contestada por grandes exegetas. Depois, o famoso biblista Herbert Haag, da Universidade de Tübingen, com quem tive o privilégio de privar, ironizou: como eram só judeus os presentes, então a Igreja só devia ordenar homens judeus.

Sobretudo: é sabido que as primeiras comunidades cristãs se reuniam na casa de cristãos mais abastados, e quem presidia era o dono ou a dona da casa. Então, se já foi possível mulheres presidirem à Eucaristia...

A questão tem, pois, de ser revista. Para não ferir este princípio fundamental do Concílio Vaticano II: "Toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão de sexo deve ser vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino."

- Anselmo Borges, teólogo e fílósofo, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Artigo publicado no jornal Diário de Notícias, 16-07-2011, e aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.

Pe. Fábio de Melo comenta agressão de pai e filho confundidos com gays


O padre Fábio de Melo usou, na noite de terça (19), seu perfil no twitter para comentar o caso do homem que de 42 anos que teve metade da orelha decepada após ser agredido por um grupo de jovens, que pensaram que ele e o filho fossem um casal gay, no interior de São Paulo. "A acentuação moral sobre os pecados da sexualidade e o esquecimento de outras questões importantes geram estas atitudes", diz o padre.

"Um crime hediondo. Achar-se no direito de agredir alguém na tentativa de fazer prevalecer um modo de pensar. Desaprendemos muita coisa. O respeito, por exemplo", completa.

O religioso aproveitou para comentar sobre as pessoas que usam os preceitos religiosos para justificar atitudes como a do grupo de jovens. "O pior criminoso é aquele que sacraliza suas maldades. É o que se diz bendito, porque está protegido sob a frágil casca religiosa", completa.

No programa Direção Espiritual, na TV Canção Nova, que também é apresentado pelo padre, ele já foi questionado diversas vezes, por famílias católicas, sobre como tratar o homossexualidade dentro de casa. Com um posicionamento mais atual e realista, o religioso admite que não é o pior pecado do mundo. [Veja o vídeo aqui]

"Não sou eu quem vou fazer julgamento de ninguém. Todos nós temos nossas fraquezas e não vou entrar no mérito do que é certo ou o que é errado, porque todo mundo já sabe. A sexualidade é uma questão muito complexa. Quando nós falamos de sexualidade, parece que estamos falando do pior pecado do mundo. Pelo amor de Deus, não é isso. Nós não podemos tratar essas questões com esse moralismo cego, que nos impede de ver o outro" diz.

Fonte: Gay1

"Assim me diz a Bíblia": documentário completo


Disponibilizamos aqui o link completo do documentário Assim me diz a Bíblia, do qual até então sabíamos apenas de trechos postados no You Tube - dica preciosa do Projeto Libertos de Verdade.

Diz a sinopse oficial:
O amor entre duas pessoas pode ser uma abominação? O abismo que separa homossexuais e cristãos é de fato tão grande quanto aparenta? Como a Bíblia pode ser usada para justificar ódio? Estas são as questões no coração de Daniel Karslake em "Como Diz a Bíblia". Através das experiências de cinco famílias tradicionais americanas, descobrimos como as pessoas conseguem, ou não, lidar com um filho gay. Ouvimos vozes respeitadas, ligadas a diversas religiões.
Para quem ainda não viu, vale tirar um tempo para assistir com calma.

Bom fim de semana!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Temperamento difícil para amar


I
palavras meu amor conhece todas
que belo passatempo é não encher folhas
enquanto examino as ranhuras da mesa
e a paisagem de um restaurante ou padaria
dobrada em pedaços enquanto deixo
de ver e ouvir outra pessoa

II
meu amor não gosta dos sábados
domingos ou dias de semana
meu amor não quer feriados
meu amor não quer tirar folga
eu só queria tirar o dia
pra dizer agora que há você
o que é que vem agora

- Ana Guadalupe

Uma Igreja sem medo


"Queria que esta Igreja não condenasse a ninguém, que fosse misericordiosa e que não tivesse medo de enfrentar os desafios do mundo moderno. Hoje queremos retomar essa herança em tempos em que a tentação de nos fechar sobre nossos temores, e reagir dando lições para todos e sobre todos, é muito grande”

- Papa João XXIII, citado aqui

Homofobia e o Congresso Nacional

Arte: Shaka


O Congresso Nacional entrou em recesso neste mês de julho, fazendo este momento propício a fazermos uma análise e uma avaliação desta nova legislatura e sua atuação em relação à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).

O dia 05 de maio de 2011 ficará na história como a data em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu por unanimidade a união estável homoafetiva, com base nos preceitos constitucionais da igualdade, da dignidade humana, da liberdade e da segurança jurídica. Passamos a ser o 34º país no mundo a ter esse direito reconhecido. 2011 também será lembrado como o ano em que o Conselho de Diretos Humanos das Nações Unidas aprovou com 23 votos a favor e 19 contra uma resolução que reconhece os direitos humanos das pessoas LGBT e pede ação por parte da ONU em caso de violação desses direitos.

No Congresso Nacional, no entanto, andamos a passos lentos no que diz respeito à garantia da cidadania plena das pessoas LGBT. Por outro lado, a eleição da senadora Marta Suplicy (PT-SP), do deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) e outros/as aliados/as e a rearticulação da Frente Parlamentar Mista pela Cidadania LGBT nos deu um alento para aprovação da criminalização da discriminação e da violência homofóbicas, como já é o caso em 58 países no mundo. Numa ação heroica, no primeiro dia desta legislatura, a senadora Marta conseguiu as 27 assinaturas necessárias para desarquivar o projeto de lei que criminaliza a homofobia.

Infelizmente, na primeira votação na Comissão de Direitos Humanos, o projeto teve que ser retirado, tendo em vista uma oposição de parlamentares religiosos, mais precisamente dos fundamentalistas.

Observando a conjuntura, nos demos conta de que não apenas os setores fundamentalistas iriam se posicionar contra o projeto de lei. Outros parlamentares também estavam receosos de votar um projeto que alcançou um recorde de assinaturas pró e contra, bem como um recorde de telefonemas para o Alô Senado, tanto favoráveis como contrários, ao ponto de congestionar todas as linhas.

Na política, e principalmente no parlamento, a conversa, o diálogo e a negociação são fundamentais. Mais uma vez, foi esse espírito que conseguiu reunir em torno da mesma mesa – num encontro agravável e respeitoso – a senadora Marta, os senadores Marcelo Crivela (PR/RJ) e Demóstenes Torres (DEM/ GO), além de Irina Bacci, secretária-geral da ABGLT e eu, com o intuito de conversarmos sobre um projeto de lei que apenas visa a dar proteção à comunidade LGBT no Brasil, contra a violência e a discriminação homofóbicas.

Chegamos à conclusão de que todos e todas presentes queríamos diminuir a discriminação e violência contra os homossexuais no Brasil, tendo em vista que as pesquisas mostram que em torno de 70% já foram discriminados em algum momento da sua vida e 20% já sofreram violência física em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero.

A assessoria do senador Demóstenes Torres, um parlamentar reconhecido e respeitado pelos juristas da Casa, ficou responsável por fazer a minuta da lei baseada no que foi discutido na reunião. Inclusive, a exemplo da Lei Maria da Penha, a proposta caminha para que a lei tenha o nome de Alexandre Ivo, em homenagem ao adolescente de 14 anos sequestrado, torturado e assassinado no município de São Gonçalo (RJ) em junho de 2010 por motivo de intolerância homofóbica.

Com a minuta oficial em mãos, estamos dialogando com todas as pessoas e movimentos interessados em um Brasil que, além de eliminar a pobreza, também seja um país com menos violência e com menos discriminação. Como qualquer avanço real e significativo na política e na sociedade, nada é tão fácil ou vem de mão beijada. Contudo, nossa expectativa é de termos boas noticias no segundo semestre e, para tanto em nossa luta pelo respeito, pela igualdade e contra a violência e a discriminação, nos inspiramos nas palavras de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

- Toni Reis
Professor paranaense, 46 anos, formado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é especialista em sexualidade, mestre em Ética e Sexualidade e doutorando em Educação. Preside a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e é conselheiro do Conselho Nacional LGBT.

Publicado originalmente no Congresso em Foco, em 19/07/11

Ufanismo hétero


Nunca tinha me ocorrido que deveria ficar orgulhosa de ser heterossexual. Seria motivo de orgulho se fizesse algo que exigisse empenho, superação, conquista, ou mesmo por ser ou fazer algo que enfrentasse forte desvalorização, a modo de confronto. Sem dúvida os gays têm do que se orgulhar, porque a saída do armário pressupõe uma coragem de soldado espartano. Experimente dar a cara para bater cotidianamente, suportar os maus tratos e a maledicência, quando não a condescendência! Sem dúvida é uma valentia que pareceria desnecessária aos heterossexuais.

Quando se é adolescente, apesar do corpo estar em seu momento mais viçoso, quase todos se sentem estranhos, fora de prumo, deformados, indesejáveis. Imagine, então, quando nesse momento de descobrir a própria sexualidade você deseja algo considerado “errado”. Sem uma imensa força de vontade não se inicia essa caminhada de encontro aos amores que fazem devanear, que dão tontura e arrepios, os quais, querendo ou não, para muitos envolvem pessoas do mesmo sexo.

Por isso, é extraordinário que gays existam e tenham encontrado o empenho necessário para amar-se e legitimar isso socialmente. Sua aceitação é fruto de militância, proselitismo e ousadia. Declarar o orgulho de algo tão condenado é a afirmação necessária para enfrentar o efeito negativo da condenação. Mas tanta hostilidade seria incompreensível se não percebêssemos que tornar-se heterossexual é uma condição tão frágil. Cada dia mais, visto que as identidades sexuais se viram esvaziadas de seus clichês, o homem poderoso e sua mulher submissa.

O projeto do parlamentar evangélico Carlos Apolinário (DEM), propondo o “dia do orgulho heterossexual” para as vésperas do Natal é prova da incerteza de que esse desejo seja um caminho direto e natural. Admitir que é preciso orgulhar-se disso, parte do pressuposto de que para amar alguém de outro sexo também é preciso vencer muitas barreiras. Para chegar a ser heterossexual será necessário manter no armário o caráter erótico de vários vínculos com pessoas do mesmo sexo: as amizades, que são amores que não vão para a cama, os desejos inadmissíveis entre a menina e sua mãe e menino e seu pai. Há muito mais confusão e incerteza no caminho que levará alguém a ser hétero do que a bancada evangélica poderia jamais admitir. Quem sabe, de forma inconsciente, eles estejam pressupondo que em termos de amor e sexo não há caminho natural? Sofre-se para chegar a qualquer definição, por isso seria preciso orgulhar-se de todos os resultados. Desconfio, porém, que não seja bem isso que o Sr. Apolinário tinha em mente.

- Diana Corso, psicanalista
Publicado originalmente no Jornal Zero Hora e reproduzido via blog da autora

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Atualização em 03/08/11:

E vejam isto: Dia do Orgulho Hétero envergonha São Paulo, diz ABGLT

O porquê do retorno do sagrado


O filósofo Charles Taylor, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 15-01-2009, aborda a "tese da secularização" e sugere que hoje vive-se uma redescoberta do espírito. Segundo ele, "é necessário também saber trazer à superfície aqueles valores vividos profundamente pelas pessoas, isto é, articulá-los, dar voz a eles". A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o artigo.

É surpreendente, mas as ciências sociais, de resto nascidas secularizadas, foram até agora cegas e surdas frente aos valores espirituais. Salta aos olhos a total indiferença que não poucos filósofos, sociólogos e historiadores reservam à dimensão do espírito. As consequências desse desinteresse são pesadas no nível da imprensa e da opinião pública, especialmente a culta. Mas não é suficiente que, ao redor da religião, tenha sido criada intencionalmente uma cortina de indiferença e de ignorância; assim, a fé se torna objeto de contínuos ataques. É significativa a frase do Nobel Steven Weinberg, que além do mais é um cosmólogo e não um sociólogo: “Há pessoas boas que fazem coisas boas, e pessoas ruins que fazem coisas ruins, mas, se quiserem encontrar pessoas boas que façam coisas ruins, voltem-se para a religião”. Em alguns países, essa frase se tornou quase um provérbio e é repetida pela imprensa e nos bares. É impressionante que um homem como Weinberg se saia com tal frase, um homem que viveu grande parte da sua vida em um século, o XX, que conheceu os regimes mais opressivos da história. É essa objeção que eu utilizo logo que alguém se sai com a frase de Weinberg. E obtenho, invariavelmente, a seguinte resposta: “Mas o comunismo era uma religião!”. Em síntese, para alguns, a palavra “religião” se tornou sinônimo de irracionalidade e até mesmo de assassínio.

Na prática, há quem entenda por “religião” um complexo de crenças que pode induzir pessoas boas e pacíficas (que não matariam nem uma mosca, sei lá, para conseguir um ganho pessoal) a se transformar em assassinas por uma “causa”. Um modo de pensar bastante rústico, esse. Ao qual se coloca uma outra objeção ainda: Hitler, Stalin, Pol Pot, Mao etc. eram todos inimigos da religião. O outro efeito negativo da mentalidade antirreligiosa é o atraso com o qual o verdadeiro problema da violência que cresce nas nossas sociedades é enfrentado. Ninguém está imune ao risco de ser arrancado da própria vida tranquila e recrutado na violência de grupo. Está na espreita a tentação de assumir como um alvo um outro grupo social e de considerá-lo responsável por todos os nossos males. Ora, a tarefa urgente é entender o que leva grupos inteiros de pessoas a se sentirem prontos para ser cooptados em um projeto do gênero.

Mas temos uma abordagem imperfeita sobre esse problema. Grandes escritores como Dostoevski iluminaram a origem da violência e do delito, que, porém, ainda permanece envolvida no mistério. E é incompleto o conhecimento que temos acerca do caminho seguido por personagens dotados de carisma espiritual, como Gandhi, para convencer as massas a repudiar a violência, parando-as justamente quando estavam por ultrapassar a linha de não retorno. Sem intervenção de autoridades espirituais, frequentemente os esforços melhor intencionados também não conseguem impedir que a história se faça “sobre a mesa do açougueiro”, como disse Hegel. E dá calafrios pensar que Robespierre votou contra a pena de morte nas primeiras discussões sobre a Constituição republicana.

Recentemente, trabalhei para compreender quais são hoje os significados e as implicações do termo “secularização”. Durante muito tempo, a sociologia considerou esse processo como inevitável. Algumas características da modernidade – o desenvolvimento econômico, a urbanização, a mobilidade em contínuo aumento, o nível cultural mais alto – eram vistas como fatores que teriam provocado um inevitável declínio da crença e da prática religiosa. Era a famosa “tese da secularização” e, durante muito tempo, dominou o pensamento nas ciências sociais e nos estudos históricos. Essa convicção foi abalada por acontecimentos recentes. A religião reagiu à modernização, respondeu ao desafio demonstrando a própria vitalidade. Em todo o caso, porém, a religião se tornou a base para uma mobilização política e o fenômeno é inclusive ameaçador, dadas as proporções que assumiu. É hora de conhecer a fundo essa dinâmica, os benefícios e os malefícios que comporta, ver claramente em um mundo que a velha teoria da secularização ainda esconde à vista. A incapacidade de distinguir a dimensão espiritual da vida humana nos torna incapazes de explorar temas vitais. Então, trata-se de reportar a espiritualidade ao centro e em domínios abertos em que descobertas decisivas são possíveis.

No mundo secularizado, ocorreu que as pessoas se esqueceram das respostas às principais perguntas sobre a vida. Mas o pior é que se esqueceram também das perguntas. Os seres humanos – que o admitem ou não – vivem em um espaço definido por perguntas profundas. Qual é o sentido da vida? Existem modos de vida melhor e piores, mas como são reconhecidos? Quais são os modos úteis para o indivíduo e para a comunidade à qual pertence? Qual é o fundamento da minha dignidade pessoal, que eu procuro defender por mim mesmo, a cada dia? As pessoas têm fome de respostas para todas as questões e, se se dão conta ou não, sentem a necessidade de vê-las resolvidas por alguém. Haverá quem considere errada ou absurda a minha ideia. Eu estou certo de que é fundamentada.

Fala-se de “descoberta do espírito”, em analogia com as descobertas que ocorrem na biologia, física e química. Mas é mais exato falar de “redescoberta do espírito”: o homem tem uma excepcional capacidade de se esquecer de coisas que conhecera e depositara no profundo do coração. Os filósofos, a partir de Platão, analisaram essa característica humana. Heidegger fala, a propósito, de “esquecimento do ser”. Eu penso que o homem desliza em uma “desmemória do ser”. Creio que caímos em um tipo especial de esquecimento. Em todo o caso, o mundo moderno se funda sobre uma cadeia bem precisa de desmemórias.

Uma das regras principais do saber humano é tirar para fora as respostas inarticuladas que as pessoas se dão na vida. Por isso, temos necessidade de um novo conhecimento da razão. Não se trata simplesmente de se mover com procedimento dedutivo por meio de um argumento. É necessário também saber trazer à superfície aqueles valores vividos profundamente pelas pessoas, isto é, articulá-los, dar voz a eles. Penso que é muito perigoso esquecer os valores, porque novidades positivas diversas emergiram no nosso tempo, enquanto o povo respondera, de um certo modo, às perguntas que as novidades pressupunham. Boa parte da violência ocorrida no nosso mundo provém do fato de que os jovens são recrutados por causas que os transformam em horríveis robôs assassinos. Quem os recruta é uma oferta que promete dar um conteúdo às suas vidas. Estão sem trabalho, sentem-se sem futuro, não têm (não podem ter) o sentido da dignidade. Sim, deram uma resposta a uma pergunta. Uma resposta extremamente destrutiva, porque autodestrutiva. E nós estaremos desesperados, se não conseguirmos recomendar-lhes, em tempo útil, uma resposta diferente.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pescadores

Foto: Kwong

Somos todos pescadores e, mais do que isso, pescadores à deriva. Perdidos e crentes naquilo que temos: água, luz, calor, motor, comida e aqueles abrigos dos quais os mais importantes dizem respeito ao pertencer a alguém ou a algum grupo, etnia, classe, país e sociedade do que a ser ou ter alguma coisa. É impressionante observar como nos sentimos seguros e salvos com tão pouco: uma reza, uma canção, um amor, um elogio, um ódio, um livro ou um copo d"água. Não existimos se não atuamos em algum teatro que nos informe sobre como ser e nos apresente um conjunto complicado e contraditório de papéis sociais - do nome de família e do clube de futebol - a coisas ainda mais abstratas, senão impossíveis, como ser completamente bom, honesto, forte, sensível, honrado e, para culminar uma enorme lista, viver tranquilo e feliz!

Como ser tudo isso e mais alguma coisa quando o tapete sobre o qual atuamos, nos é subtraído? E o drama se transforma porque somos obrigados a desempenhar papéis não planejados, esperados e desejados. Como diz o axioma de Shakespeare, o mundo é um palco e todos somos atores nesse drama para o qual não fomos convidados e no qual temos um momento de entrada e outro de saída que, para nossa angústia (e felicidade), não sabemos quando vai ocorrer.

Se soubéssemos, a vida social seria impossível por uma ausência de valores. As juras, as vocações, a dedicação, os gozos, as promessas, as vinganças, os grandes ressentimentos - tudo o que, no fundo, depende de decisão e escolha - desapareciam. Bem como a conversão, o arrependimento e a crise de consciência. O imponente "agora ou nunca" perderia o sentido. As lágrimas sem testemunho são o produto dessa finitude precipitada pelas situações-limite cujo desenlace não sabemos, embora possamos imaginá-lo. E aí está, conforme contam meus amigos mais queridos nos livros que ontem e hoje escreveram, a razão da música, da poesia, do teatro, da dança, do cinema e, acima de tudo, da literatura - dessas "artes" cujo alvo é a transformação da vida (insondável nas suas origens e fim, bem como na sua trajetória) em algo com significado. Com um início, um meio e um fim. Pois nesses casos, a verdade irrecorrível da finitude (e da morte, que é comum a todas as sociedades humanas, apesar de suas enormes - e aparentes - diferenças) transforma-se em algo prosaico, já que a experiência da morte nas artes permite viver esteticamente o fim, realizando - quando tudo vai bem - o casamento da Verdade (todos morrem) com a Beleza (nada mais formoso do que uma vida honrada).

* * *

Escrevo nesse tom porque esses dias têm marcado minha vida por passagens especiais. Da morte de um ex-presidente que honrou o liberalismo; dos desastres que deixam ver a mão sombria e cega do acaso. Tudo culminando, porém, com o resgate milagroso e, por isso, belo e redentor do humano dos seis pescadores capixabas que, depois de 21 dias à deriva e a 500 quilômetros de distância do seu ponto de partida, chegaram - notem - à "terra firme" para gozarem do reencontro com suas famílias.

Quem já viveu as duas situações, sabe bem o que é experimentar o sólido (da tal "terra firme") afundar na liquidez da morte súbita e da doença incurável. Melhor dizendo, das incertezas do viscoso - situado entre o sólido e o líquido -, que é uma figura mais adequada para as fantasias terríveis guardadas pelo não saber o que aconteceu com o filho, a esposa, o irmão ou o amigo - engolfados pelo mar imenso, pelo breu da noite e pelo frio da tempestade. Não morreram, Deus é grande! - diz um lado nosso. Estão mortos, não há esperança! - diz um outro. Quando não nos é dado saber se o lado que guarda a esperança é maior ou menor do que o desesperançado, chegamos aos limites do texto frequentemente simplório (e como poderia ser de outro modo?) que a família, a escola e o sistema nos infunde. Olha, guri, você cresce, fica forte, educa-se, casa-se, torna-se adulto, tem filhos, e um dia - depois de ter sido "feliz para sempre" - você (tranquilamente) morre...

Quando a dúvida do será que morreu ou sobreviveu bate na porta; quando somos assolados pela doença incurável que canibaliza o ser, sabemos que chegou a nossa hora. Momento de desesperar e tudo renegar? Momento de entrar em depressão e desistir de viver? Momento de se sentir traído pelos deuses e pelo tal de destino que só nos visita quando não é esperado?

Cada qual responde como pode. Uns agarram-se no outro mundo. Outros descobrem que a "nossa hora" é um áspero chamado para um renascimento. Para uma outra vida, com aqueles entes queridos dentro de nós. De agora em diante, temos que viver o mundo com um pedaço de nossas biografias cortadas, feridas, mas paradoxalmente ampliadas. Com esses entes queridos dentro de nós, temos a obrigação de honrar suas memórias e de, eis o mais difícil, fazê-las viver através de nossas vidas, toda essa felicidade que, apesar de tudo, ainda pode ser encontrada.

Pois só os perdidos podem ser achados.

- Roberto Da Matta
Publicado no Estado de S. Paulo e no O Globo em 20/07/11. Reproduzido via Conteúdo Livre

Espírito de coletividade

Reverse grafitti: Dutch Ink

Não sou particularmente fã da Martha Medeiros (muito pelo contrário, rs), mas achei que, em tempos de tanta amargura em relação ao poder público e tanta falta de cidadania - tanto em termos da falta de respeito ao cidadão por parte do Estado quanto em termos da pouca responsabilidade dos cidadãos perante a coisa pública - valia a pena propor a reflexão: para além de país, lei, direitos, deveres, o que cada um de nós faz pela coletividade? Pela comunidade? E, no fim das contas, não só por "mim", mas também pelo "outro"?

Com carinho,

Cris


Recebi um texto sem autoria, e só tive como comprovar sua autenticidade através do google, que ora avaliza os fatos, ora nos faz de bobos. Mas, ao ler seu conteúdo, tive forte impressão de que é verdade.

O fato: um grupo de 200 aposentados japoneses, engenheiros em sua maioria, está se oferecendo para substituir trabalhadores mais jovens no perigoso trabalho de manutenção da usina nuclear de Fukushima, que foi seriamente afetada pelo terremoto de quatro meses atrás. Os reparos envolvem altos níveis de radioatividade cancerígena, como se sabe.

Em entrevista à BBC, o voluntário Yaseturu Yamada, de 72 anos, diz que tem procurado convencer o governo sobre as vantagens de se aceitar a mão de obra da terceira idade. Conclui ele: “Em média, devo viver mais uns 15 anos. Já um câncer vindo da radiação levaria de 20 a 30 anos para se manifestar. Logo, nós que somos mais velhos temos menos risco de desenvolver a doença.”

Ou seja: cidadãos que estão na faixa entre 60 e 70 anos, muitos deles inativos, querem dar sua última contribuição à sociedade e, ao mesmo tempo, liberar os jovens de um trabalho que lhes subtrairia muitos anos produtivos de vida, enquanto que, para homens de idade mais avançada, não haveria diferença significativa.

Essa é uma notícia que deve fazer refletir a todos nós. Não se trata apenas de generosidade, mas de consciência. Os idosos japoneses não estão sendo bonzinhos, e sim exercendo o sentido de responsabilidade, que a eles é muito comum. Estão pensando na sociedade como algo que só funciona em conjunto, e não individualmente.

Acredito que quando a gente faz o bem para si mesmo, com ética e respeito à lei, sem ônus para nossos pares, está fazendo também o bem para todos, mas não basta: é preciso ir além, desconectar-se das vantagens pessoais para pensar no futuro, no que temos para doar em benefício daqueles que têm mais a perder.

Um jovem de 18 anos pode contrair câncer aos 38 se trabalhar numa usina nucelar acidentada. A sociedade japonesa perde se abrir mão da força de trabalho de cidadãos de 38 anos. A família japonesa também. É essa visão macroscópica da funcionalidade que faz evoluir um país.

Dizem que a gente fica com o coração mole à medida que o tempo passa. Não é por causa de coração mole que esses aposentados japoneses estão se candidatando a um trabalho insalubre. É porque estão acostumados a transformar intempéries em oportunidades, tanto pessoais quanto coletivas, sem distinção. Coração mole tenho eu que me emociono ao ver como seria fácil ser grande, se tivéssemos a grandeza necessária.

- Martha Medeiros
Publicado originalmente no Jornal Zero Hora em 20/07/11 e reproduzido via Conteúdo Livre

Triunfalismo e o êxodo oculto


Exterioridade e triunfalismo ou busca de interioridade? Há diversas formas de falar sobre a fé e a realidade eclesial. Eu tento seguir o segundo caminho.

A nota é do teólogo italiano Christian Albini, publicada em seu blog Sperare per Tutti, 27-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

Um aspecto que me faz pensar muito é o dos chamados "retornos". Refiro-me às passagens de anglicanos e episcopalianos à Igreja Católica depois da constituição Anglicanorum coetibus. Essas histórias são contadas pelos meios de informação religiosos com uma espécie de satisfação subentendida por uma suposta "expansão católica". É o recente caso de paróquias episcopalianas do Texas prestes a "voltar para Roma".

Pergunto-me por que se dá tanto espaço a esses fatos e quase nada aos cerca de 30 milhões de norte-americanos (o número não é um erro de digitação) que abandonaram o catolicismo para confissões protestantes. Um êxodo escondido semelhante ao de muitos batizados do nosso país, que, sem abandonar formalmente a fé católica (entre nós, o "mercado religioso" é menos aberto do que nos EUA), de fato dela se separam.

Talvez, às vezes se prefira falar sobre uma "Igreja de imagem" – a dos retornos, do tradicionalismo litúrgico, das devoções populares, do "milagrismo" – que gera notícias e que tranquiliza certos ambientes eclesiais, em vez do cuidado paciente que faz a fé crescer na interioridade e responde às necessidades espirituais das pessoas.

Temo que esta última seja muitas vezes desconsiderada. Daí o êxodo escondido, ou cisma submerso, como já foi definido no passado.

Vá para fora por dentro!


Poucos estariam de férias neste momento, mas é muito pertinente a reflexão transcrita abaixo para que você não deixe de dar atenção ao seu interior na correria do dia-a-dia.

Tempo de férias, tempo de paragem. Tempo de passear, de ler, de fazer o que se quiser. Ir à praia, fazer uma viagem, ir visitar os amigos, encontrar alguém da família. Também pode ser um tempo para ficar simplesmente em casa, de arrumar tudo o que se foi acumulando ao longo do ano, de fazer limpezas a fundo, de pôr as coisas de novo em ordem. Talvez este ano seja mesmo um tempo em que muitos ficarão mais por casa.

“Vá para fora cá dentro!”, ouvimos nos anúncios de promoção do turismo em Portugal. Em tempo de crise, esta é capaz de ser mesmo uma grande oportunidade de passear mais no nosso país, de descobrir toda a sua beleza, por vezes ali mesmo ao virar da esquina. Oportunidade para valorizar a serenidade de dias com tempo, sem pressas.

Férias são sobretudo um tempo de descanso, de reparação, de ganhar forças. Por isso, talvez fosse bom encarar estes dias não com a urgência de conseguir encaixar tudo o que se ansiou e sonhou ao longo do ano de trabalho, mas com a expectativa do que nos pode trazer cada dia, deixando-nos levar sem pressas. Em que é que descansamos? O que é que nos descansa de verdade? Pensava como por vezes estamos tão cansados interiormente, tão dispersos, com tanto ruído, com tantas preocupações que nos consomem e tiram ânimo, liberdade, lucidez. Nada que uns dias na praia não resolvam, pensamos nós. Sim, é verdade, os dias na praia com certeza que ajudam a acalmar. Mas o verdadeiro descanso precisa também de uma paragem e de um reencontro interior.

“Vá para fora por dentro!”, este poderia ser o mote para umas férias de fundo, em que a paragem exterior é acompanhada por uma renovação interior. Fazer silêncio e ir abrandando os motores, deixando a poeira assentar, deixando vir ao de cima tudo o que vai ficando abafado com o imediato do dia a dia. Ordenar a vida, arrumar “a casa”, perceber o que me tem vindo a cansar ao longo do ano, perceber onde me encontro, onde descanso, onde me sinto em paz, e onde me sinto dividido. Dar tempo às limpezas internas, deixando o sol entrar bem por todos os poros. Isto sim, é descansar.

Atrevermo-nos a reservar uns dias das nossas férias para pararmos por dentro e descansarmos em Deus, é sem dúvida uma aposta ganha. Não se trata apenas de trazer Deus para as férias, trata-se de reservar um tempo para estar de férias sobretudo com Ele. Nem sempre a vida permite “este tempo”, mas cada um, segundo a sua realidade e as suas possibilidades, pode procurar como pôr este plano em prática, na certeza de que o “vá de férias por dentro” se pode sempre concretizar, por mais magro que seja o nosso orçamento de férias e por menos tempo que tenhamos apenas por nossa conta. Fazer um retiro de fim de semana em algum centro de espiritualidade? Fazer uma peregrinação? Fazer um retiro de silêncio de uma semana? Procurar uma abadia com hospedaria onde possa ter um tempo mais forte de oração e contemplação da natureza? Várias e diversas são as ofertas neste “nicho de mercado”, cada um deverá descobrir o “pacote turístico” que mais lhe convier. Trata-se de pôr a criatividade a funcionar e “partir” para um tempo e espaço tendo como principal bagagem nós próprios.

Encarar as férias como tempo para voltar ao essencial faz com que a nossa atenção fique mais desperta, a nossa sensibilidade mais apurada. Tudo passa a ocupar o lugar que lhe é devido e ficamos mais preparados para viver cada dia agradecidos, enfrentando com mais força as dificuldades que vão surgindo. O regresso ao dia a dia e ao trabalho será mais suave e com mais sentido.

Com estes dias pelo meio, as férias por fora ganham então outra dimensão: o mar na praia envolve-nos na sua imensidão, as montanhas onde fazemos caminhadas falam-nos do mistério da Criação; os jantares e petiscos com os amigos tornam-se espaços de partilha de vida; os dias passados na nossa terra trazem-nos à memória a nossa história; os dias de descanso passados em casa são de facto reparadores. E esta paz de fundo vai-se prolongando no regresso à vida do dia a dia, deixando a marca que nos faz ir percebendo quando devemos parar no meio das correrias, nos curtos espaços de tempo possíveis.

É o Senhor que nos diz “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mt 11, 25-30). Pois é isso mesmo, aqui está um bom convite para estas férias!

- Margarida Alvim
Fundação Evangelização e Culturas (Portugal)
In Agência Ecclesia

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Amigos


“Eu talvez não tenha muitos amigos.
Mas os que eu tenho são os melhores que alguém poderia ter.
Além disso tenho sorte, porque os amigos que tenho têm muitos amigos e os dividem comigo.
Assim o meu número de amigos sempre aumenta, já que eu sempre ganho amigos dos meus amigos.
Foi assim aqui, uns eu ganhei há tempos, outros são mais recentes.
E quem os deu não ficou sem eles, pois a amizade pode sempre ser dividida sem nunca diminuir ou enfraquecer.
Pelo contrário, quanto mais dividida, mais ela aumenta.
E há mais vantagens na amizade: é uma das poucas coisas que não custam nada e valem muito, embora não sejam vendáveis.
Entretanto, é preciso que se cuide um pouco das amizades. As mais recentes, por exemplo, precisam de alguns cuidados...Poucos, é verdade, mas indispensáveis. É preciso mantê-las com um certo calor, falar com elas mais amiúde e no início, com muito jeito. Com o tempo elas crescem, ficam fortes e até suportam alguns trancos.
Prezo muito minhas amizades e reservo sempre um canto no meu peito para elas.
E, sempre que surge a ocasião, também não perco a oportunidade de dar um amigo a um amigo, da mesma forma que eu ganhei.
E não adiantam as despedidas, de um amigo ninguém se livra fácil.
A amizade além de contagiosa é totalmente incurável. "

- Vinícius de Moraes

A Parada do Orgulho LGBT: Carnaval fora de época ou uma grande festa política?



Dário Neto, de São Paulo, publicado na revista Caros Amigos. Uma ótima análise sobre as paradas LGBT para a nossa reflexão e embasamento nos argumentos no nosso diálogo com a sociedade.

O que é esse fenômeno que tem tomado o Brasil há anos e se construído na Avenida Paulista como a maior concentração de pessoas com direito a inclusão no Guines Book? Alguns acham que é um carnaval fora de época, outros acham que é um desrespeito à família, mas há os que vêem nela um grande ato político. Eu afirmo: As Paradas do Orgulho LGBT são uma grande festa política.

A Parada é sim uma grande festa, mas isso não a faz perder seu caráter político. É um dos poucos movimentos que evidencia um grave problema social da cultura capitalista nos centros urbanos: o isolamento das pessoas e a eliminação do espaço público como espaço de convivência. A rua, que até a era pré-vitoriana era o espaço das grandes feiras, recreações infantis, de encontros sociais, das práticas sexuais gratuitas, tornou-se o espaço de indivíduos isolados, trancafiados em suas casas, em suas angústias, afundando-se em suas depressões e remédios e tornando cada vez mais o espaço público em terra de ninguém. A Parada traz para o centro do Capitalismo os excluídos, os párias, as "aberrações" que insultam a moral católica, traz a noite marginal dos grandes centros para brilharem com todo glamour e fechação a dura realidade da violência que vivenciam no dia-a-dia. A rua, que, de espaço de convivência e confraternização social na era pré-vitoriana, tornou-se o fora da família burguesa, passou a ser tratada como a margem onde tudo o que sobra da casa burguesa, todo o lixo é depositado nela. Tomarmos a rua é ressiginificar o próprio sentido desse espaço.

Nossa linguagem política é completamente diferente do que se acostumou a esquerda ainda presa ao merchandising capitalista. Nosso discurso não é a palavra verbal, a palavra verdade herdeira do pensamento iluminista. Nosso discurso é uma semiótica da perversão: da travesti que mostra sua feminilidade com seus peitos siliconados de fora; do homem que inverte sua condição de sujeito sexual, tornando-se objeto de prazer para outros homens; das mulheres que rompem a lógica da feminilidade machista para desenharem em seu corpo como donas do prazer provocando desejos em outras mulheres; da “pintosa” de periferia que dá seus closes em plena luz do dia e mostra sua jeito livre de ser feliz. Como afronta à hipocrisia cristã que oprime diariamente toda a sociedade, os sujeitos políticos que se manifestam na Parada operam uma estética da perversão, carregando na forma o seu mais valioso conteúdo político como enfrentamento às normas que nos oprimem. Em cada forma e em cada estética manifesta vê-se o grito de que somos sujeitos do nosso corpo e queremos o nosso direito à felicidade. Entrar nesse espaço e encontrar seus iguais nesse mundo de diversidade é sentir-se pertencer, é se empoderar como sujeito social, até mesmo nas pegações mais intensas ou menos intensas que acontecem durante o percurso da parada. Nesse contexto, a política que mais se pratica é a da desconstrução da moral hipócrita, do questionamento do que se define como certo ou errado, da implosão dos valores sociais que nos oprime diariamente. Somos A Banda de Chico Buarque que sacudimos, mesmo que por algumas horas, as vidas encasuladas da sociedade.

A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo deve ser entendida em um contexto mais amplo que o da Avenida Paulista. Este ano a Parada superou seu recorde, trazendo quatro milhões de pessoas, apesar da chuva e do frio. Essa mobilização numérica alimenta e incentiva o acontecimento das outras duzentas e cinquenta paradas que ocorrem ao longo do ano e também se sustenta nelas em uma relação de interdependência recíproca. Para além da principal avenida de São Paulo, as Paradas formam um único corpo espalhadas por todo o Brasil. Essa movimentação de Paradas no Brasil e no mundo é o dinamus político que incentiva e fortalece a realização de ações em outros países que não permitem quaisquer manifestações em defesa desse tema. Na Rússia, no dia 28 de maio, militantes LGBT, apesar de o Prefeito de Moscou ter proibido a realização da Parada, se concentraram na Praça Vermelha. Em nome de uma “moral social”, religiosos e skinheads foram lá rechaçar qualquer manifestação dessas militantes. Certamente, a coragem dessa militância de enfrentar a opressão institucional e de grupos conservadores e reacionários tem sido alimentada e fortalecida pelas Paradas que ocorrem em outros locais do mundo, entre elas, a maior de todas – a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. E certamente, em países que criminalizam a homossexualidade, se levantarão outras e outros militantes, movidos pelo efeito que nossa Parada exerce sobre eles, para encampar a luta contra a homofobia.

O tema da Parada de São Paulo este ano foi: “Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia”. Como uma sociedade cristã prega tanto o amor, mas autorizam a morte de travestis? Ou autorizam que jovens sejam gratuitamente agredidos na Avenida Paulista? Ou autorizam a exclusão de crianças das escolas motivada pelo bulliyng homofóbico? Ou proíbem o casamento legal de LGBT e a não adoção de crianças por casais homoafetivos? Se há amor, deve haver respeito. E para haver respeito é fundamental que nenhum direito seja violado. Se há amor deve garantir direitos iguais: nem menos, nem mais. O clamor que se ouve nas Paradas LGBT em São Paulo, no Brasil e no mundo pode ser traduzido pela famosa frase de Rosa Luxemburgo: Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

- Dário Neto é membro do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo e doutorando em Literatura Brasileira pela USP


A Parada do Rio de Janeiro será 9 de outubro.

Abaixo, informações de como ser voluntário:
16ª PARADA DO ORGULHO LGBT RIO 2011 - COPACABANA 09 DE OUTUBRO DE 2011
2º encontro de voluntári@s 12 de agosto (sexta-feira) 18h30min
Sede do Grupo Arco-Íris Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT Rua do Senado, nº 230 - Cobertura 01 - Centro - RJ Tel. 21 2222.7286 / 21 2215.0844 www.arco-iris.org.br voluntariosparadario2011@gmail.com

terça-feira, 19 de julho de 2011

Historia da Homossexualidade por Pe. Luís Correa




Não consegui colocar o código de incorporação do vídeo.
Mas, confiram aqui a brilhante entrevista do Pe. Luis Correa sobre a Historia da Homossexualidade para o Canal Saúde da FioCruz.

Confira aqui.

Brasil Homossexualidade: uma categoria criada





Reproduzimos aqui o artigo publicado no CLAM
Centro Latino Americano de Estudos da Sexualidade



Por Bruna Mariano Fábio Grotz
Edição: Andrea Lacombe
Washington Castilhos

A agenda pública e política de 2011 tem sido preenchida em larga medida por discussões e decisões que envolvem a população LGBT. Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro reconheceu, por unanimidade, as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Casais gays passaram a ter acesso a direitos que até então eram restritos a casais heterossexuais. Além disso, pela primeira vez na história, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu informações sobre casais homossexuais na pesquisa do Censo Demográfico. Tais avanços, no entanto, não indicam um horizonte plenamente pacífico e inclusivo. O PL 122, que tramita no Congresso Nacional e tem como objetivo criminalizar a homofobia, esbarra na resistência de setores conservadores que formam, no parlamento, a chamada bancada evangélica.

A dificuldade de se fazer enxergar a necessidade de uma lei que proteja pessoas vítimas de homofobia – assim como foi feito com os negros, através da lei anti-racismo, e com as mulheres vítimas de violência, através da lei Maria da Penha – está apoiada em concepções naturalizadas, que buscam explicar desi­gualdades socioculturais, baseando-se em supostas diferenças inatas, como se houvesse algum substrato natural a embasar – e justificar – assime­trias que são produzidas e reproduzidas no plano social e cultural. Nesta semana em que a Parada do Orgulho Gay de São Paulo reuniu, segundo organizadores, 4 milhões de pessoas, e no mundo se celebra o Dia do Orgulho Gay (28 de junho), ouvimos especialistas para discutir o surgimento da homossexualidade enquanto categoria e a noção de que a heterossexualidade seja natural e de que as práti­cas que não se encaixam nesse modelo sejam antinaturais ou “desvios”, noção esta que pode ser apontada como um dos fatores da interdição de gays, lésbicas, travestis e transexuais a diversos direitos.

Nem sempre se disse que as pessoas eram homos­sexuais por manterem relações sexuais com outras do mesmo sexo. Isso não significa, con­tudo, que não houvesse tais práticas. O que não havia era um modo específico de catalogá-las, categorizá­-las, de nomeá-las como o faze­mos atualmente. É nesse sentido que é possível falar de uma “invenção da homossexualidade”. A homossexualidade enquanto categoria data do século XIX, época do surgimento da Sexologia.
“A questão de a categoria da homossexualidade ter surgido no século XIX não quer dizer que contatos sexuais entre pessoas do mesmo sexo não tenham sido objeto de condenação formal. Mesmo no século XIX, havia a sodomia, que dizia respeito não a pessoas, mas a alguns tipos de atos. Michel Foucault diz, em uma passagem clássica, que o homossexual é um personagem que tem uma história, uma vida, uma disposição anatômica diferente. Já o sodomista era apenas alguém que infringia a lei. Ele não era um personagem, era apenas um infrator”, explica o antropólogo Sergio Carrara, coordenador do CLAM.

O pesquisador explica que as concepções acerca da homossexualidade foram se modificando ao longo dos séculos. “Historicamente, a homossexualidade já foi considerada pecado, crime e doença. A despatologização da sexualidade é um processo recente”. A ideia do pecado remete a narrativas religiosas, que condenavam a sodomia. “Do ponto de vista do Cristianismo, os prazeres conjugais eram mais legítimos. O que se condenava era a possibilidade de se ter prazer sem algum tipo de sacrifício, o prazer pelo prazer. A reprodução era vista como uma espécie de tributo a ser pago pelo prazer do ato sexual. O sexo anal era condenado do mesmo modo em relações heterossexuais”, completa Carrara.
Mesmo na Grécia Antiga, quando ainda não havia o conceito de homossexualidade, a relação entre pessoas do mesmo sexo era socialmente regulada. Naquele tempo, entretanto, as práticas homossexuais não eram condenadas em si mesmas, de acordo com o historiador Paul Veyne. Segundo ele, a moral sexual vigente entre gregos e romanos condenava a “passividade sexual” quando praticada por um homem livre.

“O problema era quando havia uma inversão hierárquica: quando uma pessoa de status superior assumia uma posição considerada feminina, ou seja, era penetrada por uma pessoa mais jovem ou por um escravo. Não é adequado dizer simplesmente que a homossexualidade era aceita. As práticas não eram aceitas de todas as formas”, explica Sergio Carrara. “As relações sexuais, no contexto grego, estavam inseridas em um processo mais geral de pedagogia, de iniciação, que não tinha nada a ver com a ideia de que as pessoas se manteriam homossexuais”.

O pesquisador explica ainda que a configuração grega está próxima do que esteve vigente na sociedade brasileira, e ainda está em determinados nichos. Segundo tal noção, um homem pode ter relações sexuais com outro homem desde que mantendo a posição de ativo sexualmente. Isso não compromete sua masculinidade, e o preconceito recai somente sobre o chamado passivo sexual.

O antropólogo inglês Peter Fry, autor do livro O que é homossexualidade?, lembra que na Inglaterra do século XIX, as práticas, e não os indivíduos, eram alvos de condenação. “A restrição inglesa de sodomia de fato era uma legislação que tinha a ver com atos sexuais. O indivíduo não era condenado por ser homossexual, ele era condenado porque queria manter relações sexuais com michês”, analisa.

No texto “Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil”, referência para os estudos acadêmicos sobre as homossexualidades, Peter Fry analisa a configuração brasileira e explica que, até a década de 1960, havia uma divisão hierárquica nas relações homossexuais. Enquanto o ‘homem’ deveria se comportar de uma maneira ‘masculina’, a ‘bicha’ tenderia a reproduzir comportamentos geralmente associados ao papel de gênero feminino. No ato sexual, o ‘homem’ penetra, enquanto a ‘bicha’ é penetrada.

A escala Kinsey

Segundo o famoso entomologista norte-americano Alfred Kinsey, “os machos não se dividem em dois grupos distintos: os heterossexuais e os homossexuais. O mundo não está dividido em ovelhas e carneiros. Nem todas as coisas são negras, nem todas são brancas. Só a mente humana inventa as categorias e tenta abrigar os fatos em compartimentos”. Kinsey tornou-se famoso ao mostrar que os seres humanos não se classificam quanto à sexualidade em apenas duas categorias (exclusivamente heterossexual e exclusivamente homossexual).
“Segundo Kinsey, os indivíduos apresentam diferentes graus de uma ou outra característica, ou seja, é muito mais comum um indivíduo ficar no meio, entre a heterossexualidade e a homossexualidade, do que estar nos dois pólos extremos, totalmente heterossexual ou totalmente homossexual. Ele era anti-identitário. Se pensarmos modernamente, hoje em dia ele estaria se insurgindo contra as concepções mais identitárias do “eu sou isso, eu sou aquilo”. Ele achava que havia uma flexibilidade na sexualidade, o que é bem interessante”, afirma a antropóloga Jane Russo (CLAM/IMS/UERJ).

Em sua pri­meira obra, Sexual behavior in the human male (O comportamento sexual do macho humano), de 1948, fruto de uma pesquisa, Kinsey provocou inúmeras polêmicas ao apontar que um grande número de homens heterossexuais norte-americanos já havia fantasiado ou mesmo tido experiências sexuais com outros homens em algum momento de suas vidas, trazendo assim a ideia da disjunção e incoerência entre práticas e identi­dades sexuais. A partir daí, ele elaborou uma tabela que definia os indivíduos a partir de gradações de orientação sexual. Conhecida como “escala Kinsey”, a tabela estipulava categorias como “exclusivamente heterossexual”, “exclusivamente homossexual”, “assexuado” e outras variações que mesclavam comportamentos hetero e homossexuais.

“A ideia de Kinsey é de que na natureza você encontra contínuos, você não encontra categorias fixas. E as categorias são produzidas pelos homens e mulheres, pela sociedade. Aprecio muito o trabalho de Kinsey porque ele, como biólogo de abelhas, tinha uma capacidade de enxergar que essas categorias não eram naturais, não pertenciam à suposta fixidez da natureza”, interpreta Peter Fry.

A pesquisa de Kinsey inovou no sentido de ter como foco indivíduos que se auto-denominavam heterossexuais e, portanto, estariam dentro dos padrões de “normalidade”, mas que adotavam práticas supostamente desviantes. Até então, o investimento das ciências biológicas na sexualidade estava concentrado nos supostos desvios em relação à heterossexualidade, sendo comum usar o cérebro, os hormônios e a fisiologia de uma maneira geral para explicar comportamentos sexuais.

A trajetória das pesquisas nesse campo foi intensificando-se ao longo das décadas, ampliando os conceitos e os saberes sobre a sexualidade. Cada vez mais, comportamentos e desejos foram sendo pensados dentro de uma perspectiva construcionista, em que as interações sociais e culturais seriam tão ou mais determinantes que as características biológicas. Uma das pesquisas que se encaixa nesse contexto, publicada em 1970 pelo sociólogo norte-americano Laud Humphreys, foi a Tearoom Trade (“sexo impessoal em lugares públicos”). O autor observou as aproximações sexuais entre homens em banheiros públicos. O foco da pesquisa recaía sobre as práticas homossexuais que envolviam, além dos homens gays, homens que se identificavam como heterossexuais. Dessa forma, Humphreys mostrou que não havia uma divisão estanque entre homo e heterossexualidade. De acordo com o estudo, as práticas eram circunstanciais e não definiam plenamente as identidades sexuais.

Instrumento para fins políticos

Michel Foucault mostra que não é possível pensar na categoria “homossexualidade” sem levar em conta a teoria médica das perversões. Há na segunda metade do século XIX uma batalha em torno de uma definição jurídica ou médica do que então se chamava “sodomia”. A sodomia era um ato de delinqüência, ou um pecado. “Condenava-se o ato e não a pessoa. Quando a sexualidade começa a ser medicalizada, toda a concepção se transforma. Não se trata mais de condenar um ato, mas de compreender (e tratar) uma pessoa que se caracteriza por certo tipo de desejo, por um tipo de orientação sexual, como falamos hoje em dia. O “perverso” surge então como um personagem a ser estudado e explicado pela medicina (e não mais condenado pela justiça). A discussão é muito centrada em torno da chamada “inversão”, que depois vai ser chamada de “homossexualismo”. O homossexual era classificado como um pervertido, sendo a perversão o que escapava da “normalidade” do casal heterossexual. E, na medida em que a homossexualidade era uma doença, ela teria que ser tratada pelos médicos, e não pela justiça”, relata Jane Russo.

Tratar a homossexualidade como doença foi a forma encontrada pelos ativistas políticos e estudiosos do tema na Europa do século XIX para retirá-la do domínio da justiça. Havia na Alemanha unificada uma luta contra o código civil prussiano, que criminalizava a chamada sodomia, e, nesse momento, medicalizar a homossexualidade era mais avançado, pois implicava sua descriminalização. Essa era a ideia sustentada pelo médico, sexólogo e ativista político alemão Magnus Hirschfeld, um dos fundadores, em 1897, do Comitê Científico-Humanitário, cujo objetivo era defender os direitos dos “invertidos” e revogar o parágrafo 175 da lei alemã, que penalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Vem daí a noção da homossexualidade como doença, noção esta especialmente defendida pela Psiquiatria. No entanto, nos efervescentes anos 1960, o então emergente movimento homossexual, na luta em defesa das “minorias sexuais” (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais), passou a bus­car sua afirmação política colocando-se justamente contra o discurso médico que se tecera em torno delas. Desde o início, o movimento gay contrapunha-se à medicalização, à patologização da homossexualidade, à noção de homossexualismo, ou seja, à concepção da homossexualidade como doença física ou mental. Então, de antiga perversão, depois transformada em patologia, a homossexualidade passou a se transformar, assim, cada vez mais, em uma questão de disputa política.

A visibilidade crescente da homossexualidade tem repercutido politicamente na vida nacional e mundial. Legislações e políticas públicas inclusivas e protetivas têm sido debatidas e implementadas nos últimos anos. O cientista político Mario Pecheny, da Universidade de Buenos Aires, na Argentina – onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legalizado –, explica que a homossexualidade, enquanto categoria analítica destinada a taxonomizar uma prática e um tipo de sujeito, vem sendo utilizada para a reivindicação de direitos. “Se a homossexualidade é uma condição ou tendência (natural, genética ou ancorada no inconsciente ou na infância), não seria justo penalizá-la ou persegui-la, e tampouco tentar curá-la. Como todos os direitos, o sentido político da homossexualidade, em seu conteúdo e em sua direção, define-se historicamente. Tal concepção de homossexualidade pode ser um instrumento valioso e localizar-se no sentido da justiça social e erótica”, afirma.

O conceito da homossexualidade, que Mario Pecheny define como instrumento para fins políticos, variou historicamente e continua se alterando. Para o cientista político argentino, “a matriz que definiu a homossexualidade como condição, e logo como identidade de sujeitos e práticas, permitiu tanto o avanço como a interrupção e a armadilha conservadora e excludente. Julgar essa construção não pode ser feito fora da história e das lutas, que continuam”.

As possíveis causas das interdições

A persistência do preconceito explica, em grande medida, as dificuldades legislativas e jurídicas para a ampliação dos direitos LGBT. Basta lembrar que, mesmo depois da decisão da Corte máxima do país, um juiz do estado de Goiás se achou no direito de anular o contrato de união estável de um casal gay que tinha sido registrado em cartório. Em entrevista exibida na televisão, Jeronymo Villas Boas justificou a decisão argumentando que um casal gay não pode gerar prole e, portanto, não tem condições de ser considerado uma família. “Se você fizer um experimento, levando para uma ilha do Pacífico dez homossexuais e ali eles fundarem um Estado, sob a bandeira gay, e tentarem se perpetuar como Estado, eu acredito que esse Estado não subsistiria por mais de uma geração”, afirmou ao programa “Fantástico”, da Rede Globo.
Segundo Sergio Carrara, o preconceito que existe em relação a casais homoafetivos não tem uma única raiz. “O estigma não me parece ser apenas causado pelo fato de serem relações não-reprodutivas. Outros componentes aparecem, como a ideia da promiscuidade sexual, da homossexualidade relacionada à pedofilia ou à doença. Ou seja, outros fatores no imaginário em torno da sexualidade vão fazer com que ela se torne foco de reprovação e preconceito”, argumenta.

A associação entre pedofilia e homossexualidade foi notícia esta semana no Brasil. Em discurso na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), a deputada Myrian Rios, a pretexto de criticar um projeto de emenda constitucional estadual que inclui a orientação sexual no rol de direitos e garantias fundamentais, estabeleceu um paralelo entre orientação sexual e perversão sexual. Segundo a parlamentar, “digamos que eu tenha duas meninas em casa e contrate uma babá que mostra que sua orientação sexual é ser lésbica. Se a minha orientação sexual for contrária e eu quiser demiti-la, eu não posso. O direito que a babá tem de querer ser lésbica é o mesmo que eu tenho de não querer ela na minha casa. Vou ter que manter a babá em casa e sabe Deus, até, se ela não vai cometer pedofilia contra elas".

Mesmo tendo sido reconhecidas pelo STF, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, a prerrogativa do casamento ainda está atrelada aos casais heterossexuais, embora o primeiro casamento civil de um casal gay tenha sido autorizado no Brasil, nesta semana. “A lei diz que se pode converter união estável em casamento. Então, se a decisão do STF se aplica à união estável, por que não pode ser aplicada ao casamento? O que pode acontecer se um casal homoafetivo quiser converter sua união estável em casamento?”, questiona a presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Adriana Galvão.
Em artigo para o CLAM, o padre Luís Corrêa Lima, historiador e professor da PUC-RJ, explica que a família tem se modificado ao longo dos séculos. “Na sociedade civil está se ressignificando o conceito de família, de modo a incluir as uniões homoafetivas. O casamento religioso, por sua vez, continua fortemente enraizado na heteronormatividade da tradição judaico-cristã. Mas em países escandinavos e em regiões onde as uniões homoafetivas são comuns, Igrejas como a Anglicana e a Luterana realizam bênçãos para estes conviventes, embora distinguindo estas uniões do casamento. As mudanças na tradição não são impossíveis de acontecer, trazendo novas compreensões e a aplicações da chamada lei natural”, afirma no texto Luís Corrêa Lima.
O juiz Roger Raupp Rios, também em artigo escrito para o CLAM na esteira da decisão do STF, elogiou o reconhecimento da união de casais gay-lésbicos como entidades familiares. Segundo ele, o significado da decisão é inestimável para a consolidação da democracia e dos direitos fundamentais.

Publicada em: 29/06/2011 às 12:00 notícias CLAM

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Todos Nós Queremos ser Jovens

O vídeo é muito bacana e dispensa comentários.

Ops...Bacana não, Cool! rss!



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Rodolfo Viana

Menos parada e mais passeatas

A idéia de que o Brasil é um país tolerante com a homossexualidade é falsa. Do ponto de vista legal, milhões de cidadãos brasileiros recebem tratamento discriminatório em virtude de sua orientação sexual. Tal discriminação se manifesta tanto de forma concreta, em leis que ignoram a especificidade individual dos homossexuais, quanto de maneira abstrata, sob a forma de assédio moral, que se apresenta na escola, na família ou no ambiente de trabalho.

A polêmica causada pela propaganda eleitoral da candidata Marta Suplicy, que indiretamente levantou questões sobre a orientação sexual do Prefeito Gilberto Kassab, exemplifica bem o tipo de preconceito insidioso que afeta o dia-a-dia dos homossexuais brasileiros e que precisa ser combatido.

A responsabilidade por esse combate é matéria de governo e das instituições, mas também pertence aos homossexuais, que detêm o interesse primeiro pela afirmação e proteção de sua individualidade, em todos os seus aspectos.

No Brasil, a proteção aos direitos homossexuais é mínima. Fala-se muito, mas faz-se muito pouco. Enquanto em países latino-americanos e europeus os legisladores há anos debatem e votam sobre a igualdade jurídica dos cidadãos, o Congresso brasileiro se recusa a debater a matéria de forma conseqüente. Inexiste qualquer instrumento legal produzido pela atual legislatura com o fim de reduzir a situação de desigualdade em que se encontram milhões de brasileiros. A escassa proteção jurídica com que podem contar os homossexuais é fruto da ação exclusiva do Judiciário e de políticas públicas levadas a cabo pelo Executivo. O Congresso ignora os homossexuais.

Ao mesmo tempo, a reprodução de estereótipos negativos alimenta a intolerância. Todo homossexual brasileiro já ouviu uma piada que feriu sua dignidade e seus sentimentos. As televisões do país, por exemplo, abandonam o julgamento ético e a responsabilidade social e dão cursos de preconceito ao apresentar homossexuais em seus programas como figuras caricatas, objetos ridículos do humor nacional.

A ridicularização do homossexual à guisa de entretenimento reforça o preconceito e deseduca toda uma geração de crianças e jovens, que aprendem a considerar a homossexualidade ridícula, tratando-a e sentindo-a como tal. As conseqüências negativas desse comportamento no indivíduo podem ser profundas e trazem prejuízos à sociedade como um todo.

Em São Paulo, como em tantas outras cidades brasileiras, uma vez ao ano, milhões de pessoas participam da Parada Gay. Saem às ruas para celebrar a diversidade e reivindicar direitos iguais para os homossexuais. Tais paradas travestem-se de festa e de evento social, mas não se há de esquecer que sua finalidade é a mesma de uma passeata de trabalhadores lutando por melhores salários. No caso, congrega cidadãos que, coletivamente, reclamam direitos individuais negados e tratamento legal igualitário.

Em todos os outros dias do ano, porém, quando não há Paradas Gay, as demandas homossexuais saem de cena. As milhões de pessoas que, num domingo por ano, saem às ruas em reivindicação por direitos iguais diluem-se na paisagem das cidades. Tornam-se invisíveis a olho nu.

No entanto, para o indivíduo, a experiência quotidiana de ser brasileiro, homossexual e discriminado continua. É importante que os milhões que marcham e dançam pelas ruas nas inúmeras Paradas Gay do Brasil continuem marchando sozinhos, em suas vidas privadas, combatendo o preconceito onde ele se materializa: no dia-a-dia. A missão é olhar a sociedade nos olhos, ser reconhecido, celebrar o que é comum na natureza humana e exigir respeito.

Ao contrário do que se possa sugerir, a natureza homossexual não pode ser vista como limitação às possibilidades existenciais ou profissionais de ninguém. A orientação sexual não define nem diminui a existência das pessoas. Não é justo que tenha reflexos no gozo de direitos individuais. Por meio de seu trabalho, nas mais diversas profissões, os homossexuais oferecem contribuição enorme ao desenvolvimento do País. Merecem participar integralmente da sociedade brasileira, em todas as suas dimensões, sem qualquer tipo de limite.

- Alexandre Vidal Porto, diplomata e escritor
Publicado originalmente em O Globo em 19/10/2008 e reproduzido via eagora.org.br

domingo, 17 de julho de 2011

A essência do princípio da liberdade


Todas as pessoas têm iguais direitos. Qualquer um pode conduzir sua vida da forma que melhor lhe aprouver. Pode amar quem desejar, contanto que não cause prejuízo a ninguém. Essa é a essência do princípio da liberdade.

O comentário é de Maria Berenice Dias, advogada, mestre em direito civil, especializada em direito homoafetivo, em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 16-07-2011, e reproduzido via IHU.

Não é outro princípio que rege o direito de cada um acreditar no que quiser, professar qualquer credo ou religião, tanto a que admite o casamento homoafetivo como a que recuse a prática homossexual. Essas garantias, que dispõem de assento constitucional, precisam conviver de forma harmônica e respeitosa, pois é indispensável assegurar o respeito à dignidade humana, base de um Estado que se quer democrático de direito.

No entanto, em nome da liberdade de crença, se está tentando justificar posturas discriminatórias contra a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Ou seja, ninguém pode desrespeitar ninguém. Pelo jeito, se está olvidando do direito à liberdade, que nada mais é do que direito de respeito à diferença.

Com certeza esse é o embate que vem impedindo a criminalização da homofobia. Sob a justificativa de preservar a liberdade religiosa, se está pretendendo chancelar o direito de discriminar, de incitar o preconceito e deixar impune manifestações de ódio. Será que o direito de professar uma fé vale mais do que o direito de amar? Crer é mais importante do que viver?
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