sábado, 4 de junho de 2011

Casamento gay: sim

Pôster: ReForm School


Em 2004, a Revista Superinteressante publicou uma matéria com a chamada "Casamento gay" e duas noivas na capa. O que será que mudou de lá para cá? Reproduzimos a matéria aqui, com algumas ressalvas e comentários [entre colchetes e em itálico] - e esperamos sua opinião. :-) Boa leitura!


As três letras acima dividem o Brasil. E impedem que 6 milhões de gays tenham acesso aos mesmos direitos que o restante da população. Se todos somos iguais perante a lei, está certo alguns brasileiros terem mais benefícios que outros?

Até 1977, casar no Brasil era aventura para sempre. Pode parecer estranho para quem não viveu aqueles tempos, e mais estranho ainda para quem os viveu, mas naquela época a lei proibia o divórcio. E, quando finalmente o governo autorizou a separação de casais, instituiu que cada cidadão poderia fazê-lo uma única vez na vida. Na sessão que aprovou o divórcio, um parlamentar disse que o país criava uma "fábrica de menores abandonadas". O deputado Nélson Carneiro, espécie de paladino da causa, batalhou duas décadas para emplacar seu projeto de legalização. Nesse tempo, foi tratado como qualquer coisa entre o herói libertário e o anticristo que enfrentava católicos e desprezava crianças.

Hoje, para muita gente essa passagem parece um episódio folclórico dos tempos em que o Brasil era um país tacanho e conservador. Mas há quase três décadas a legalização do divórcio despertava emoções e debates tão fortes quanto a idéia de permitir, em 2004 [2011!], que duas pessoas do mesmo sexo tenham permissão para se casar. Para os críticos, trata-se de uma ameaça à família, à sociedade e às crianças que serão educadas por esses casais. Para os defensores, estamos diante de uma questão de escolha individual e direitos iguais. Legalizar o casamento gay significa que o governo brasileiro está reconhecendo que naquele ato não existe nada de errado. Pelo contrário: que o casal está plenamente apto a formar uma família – provavelmente a mais fundamental de todas as instituições da sociedade, onde futuros cidadãos recebem carinho, aprendem valores morais e noções de certo e errado.

Desde 1996, o Congresso tem entre seus projetos uma proposta que autoriza a parceria civil entre homossexuais no Brasil. Por parceria civil, entenda algo muito próximo de casamento. Se fosse aprovada no ano em que foi proposta, o Brasil estaria na vanguarda dos direitos homossexuais. Hoje não é mais assim: desde 2001, na Holanda, os direitos de casamento valem para todos os cidadãos – as palavras homo e heterossexual nem são citadas pela lei. É impossível saber quantos casamentos gays aconteceram no país: os registros não dão conta se os noivos eram do mesmo sexo, assim como desconhecem se eram negros, judeus ou canhotos. Na Bélgica, Canadá e no estado americano de Massachusetts, a situação é semelhante. França, escandinavos e Buenos Aires, entre outros, já autorizam a união civil entre gays.

Do lado oposto está a maioria dos países árabes, que condenam à prisão quem transar com alguém do mesmo sexo. Ou o Zimbábue, cujo ditador Robert Mugabe enxerga gays como "subanimais" e "sem direitos". Na última década, o planeta lentamente começou a se polarizar entre nações que garantem direitos aos gays e as que não os reconhecem como cidadãos. É nesse quadro que o Brasil vai ter de se posicionar.

Procurar um lugar para a minoria homossexual dentro da sociedade não é um problema recente. Aristófanes, um dos discursantes no Symposium, de Platão, contava que a raça humana foi criada com três gêneros: os duplamente machos, os duplamente fêmeas e os que eram macho e fêmea ao mesmo tempo. Cada um deles com quatro pernas e quatro braços. Como toda boa mitologia, em algum momento as criaturas erraram e foram punidas pelos deuses, que as separam em duas partes. Desde então, estamos todos procurando nossa outra metade. Com uns 3 mil anos de antecedência, Aristófanes concebeu uma parábola para o amor nos tempos modernos, contemplando o relacionamento não só entre homens e mulheres, mas também entre homens e homens e mulheres e mulheres. Mais ainda, ofereceu uma explicação idílica e romântica para o desejo de nos aventurarmos na mais radical das declarações de amor: viver junto, e de preferência para sempre, com outra pessoa.

A lei
Se você entende casamento como a união de dois pombinhos que dormem na mesma cama todas as noites, se amam, dividem as contas, são fiéis, moram sob o mesmo teto, brigam com certa regularidade para depois fazerem as pazes, então casamento gay já existe. Homossexuais têm relacionamentos estáveis idênticos aos dos heterossexuais. E continuarão tendo, queira sua vontade ou não. Portanto, o assunto desta reportagem não é discutir se duas pessoas do mesmo sexo têm o direito de viver juntas, mas se o Estado deve reconhecer tal relacionamento da mesma maneira como faz com um homem e uma mulher. Mesmo porque, ao pé da letra, não há nada na Constituição brasileira que proíba a união gay.

O artigo 226, que define regras para o casamento, em nenhum momento diz tratar-se de uma exclusividade para os sexos opostos. A maioria dos juristas enxerga no silêncio da principal legislação brasileira uma proibição à combinação homem com homem, mulher com mulher e uma certidão de casamento. Trata-se de uma questão de interpretação: foi aproveitando uma brecha parecida que ativistas holandeses conseguiram fazer a Suprema Corte do país afirmar que a união entre gays era legal – e assim celebrou-se o primeiro casamento gay plenamente reconhecido dos tempos modernos, dia 9 de abril de 2001, em Amsterdã.

No Brasil, o Congresso ainda tenta aprovar a lei autorizando que pessoas do mesmo sexo tenham acesso ao dispositivo legal batizado de parceria civil, que garante seu reconhecimento como casal. Não é um casamento, porque não dá aos parceiros as mesmas garantias que os casados têm, como permissão para adotar crianças. Não é também uma equiparação plena de direitos porque, se fosse, o casamento homossexual se chamaria casamento, e não parceria civil. Passeando pela pauta há oito anos, a proposta sequer entrou em votação – se entrasse, provavelmente receberia o "não" dos congressistas. "É um projeto emblemático dos direitos homossexuais, e por isso enfrenta resistência maior. Vai ser difícil aprová-lo", diz a senadora Ideli Salvatti, presidente da Frente Parlamentar pela Livre Expressão Sexual, formada por deputados e senadores. "Nenhum legislador vai desagradar seu eleitorado. O caminho para a aprovação do casamento é o Judiciário, que não pode manter uma desigualdade", afirma a desembargadora Maria Berenice Dias, especialista em direitos homossexuais.

Se for autorizada, a parceria civil representará uma conquista gay sem precedentes no Brasil. Ainda assim, entrará em vigor já obsoleta – é considerada demasiadamente preocupada com bens e patrimônio. Na França, que tem a legislação familiar considerada por especialistas como a mais liberal no mundo, o Pacto Civil de Solidariedade, como é conhecido, estipula que duas pessoas maiores de idade – de qualquer sexo – podem constituir família e regular por completo o regime de direitos e deveres entre elas. "Tudo que diz respeito ao casal, inclusive a fidelidade sexual, pode ser definido nesse documento", afirma o juiz federal Roger Raupp Rios, autor de um doutorado sobre discriminação. "Até o início do século 20 existia um conceito rígido de família: homem, mulher e criança. Hoje não é mais assim. Pessoas vivem juntas, e a lei precisa estar aberta para novas formas de casamento."

Mesmo sem amparo legal, homossexuais vêm conseguindo na Justiça a equiparação de seus relacionamentos com os de heterossexuais. E não é raro terem benefícios idênticos ao casamento – o caso da esposa de Cássia Eller, que conseguiu a guarda do filho da parceira morta, é um exemplo. Mas vitórias na Justiça não podem ser confundidas com direitos iguais. É impossível dizer que alguém obrigado a contratar um advogado e enfrentar os tribunais para ter acesso a uma herança, por exemplo, tenha os mesmos direitos de quem recebe o dinheiro automaticamente. Um exemplo: os Supremos Tribunais de Justiça e Federal devem decidir em breve se um homem que viveu 47 anos com um parceiro recém-falecido tem direito a herdar seus bens. A pedido da Super, especialistas prepararam uma lista com diferenças entre um casal heterossexual e um casal gay que mantenha relação estável. Chegaram a pelo menos 37 direitos que o país nega para aqueles que têm duas escovas de dentes azuis – ou duas rosas – no banheiro de casa. O casamento certamente encabeça a lista das desigualdades. Mas há outras. Em caso de emergência, um gay não pode autorizar que seu marido ou esposa seja submetido a uma cirurgia de risco. Aos casais homossexuais também é vetado fazer declaração do Imposto de Renda em conjunto, e deduzir dela gastos com dependentes. Ou seja, no Brasil um casal gay paga, em tese, mais impostos que seu equivalente heterossexual. Pior: recebe menos benefícios, pois, entre outros, eles raramente conseguem incluir o parceiro no plano de saúde. Todas essas desigualdades poderiam ser eliminadas com a legalização do casamento (veja mais exemplos na pág. 51).

Se o Estado faz diferença entre pessoas por causa da orientação sexual, como devemos entender o princípio, expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que todos somos iguais perante a lei? "A Constituição é soberana para aplicar o princípio da igualdade da maneira que quiser", diz o jurista Ives Gandra Martins, da Universidade Mackenzie. "Existem inúmeras exceções ao princípio da igualdade. A proibição do casamento entre gays é só um exemplo. Da mesma maneira, existem atividades econômicas que pagam mais impostos que outras."

No final das contas, o debate sobre casamento gay é um confronto entre cidadania e valores morais. De um lado, pessoas que pagam impostos e, portanto, exigem ter os mesmos direitos que o restante da população. Do outro, aqueles para quem esse direito é uma afronta à sociedade em que preferem viver. Aqui, e em boa parte do mundo, a vontade anticasamento da maioria prevalece sobre os direitos da minoria. E isso é perigoso. "Tirar o direito da minoria é tirar o direito de todos. Ou a lei vale para todos ou ela não vale nada", diz o filósofo Roberto Romano, professor de Ética e Política da Unicamp.

A moral
Ao se deparar com esse tipo de reflexão, grande parte das pessoas alega valores morais para se posicionar contra o casamento gay. Em fevereiro, quando propôs um remendo na Constituição americana proibindo que homossexuais casassem, o presidente George W. Bush disse que agia para proteger "a instituição mais fundamental da civilização". O comentarista Charles Krauthammer escreveu na revista Time que a maioria dos americanos considerava gays "moral e psicologicamente repugnantes e não merecedores de aprovação social". Nos Estados Unidos, a concordância com o casamento gay oscila pouco abaixo dos 50%. Na União Européia chega a 57%, mas fica abaixo da maioria em países como Itália e Reino Unido. Na ausência de pesquisas específicas no Brasil, outros levantamentos de opinião tornam difícil acreditar que sejamos favoráveis ao reconhecimento da parceria entre pessoas do mesmo sexo. Em 1998, 60% dos entrevistados afirmaram ao Ibope que não contratariam um homossexual. No início deste ano, uma pesquisa da Unesco mostrou que 25% dos estudantes não gostariam de ter um colega de sala homossexual.

Para entender quais são os valores morais que fundamentam tal rejeição, é preciso olhar para a mais comum de suas origens: a religião. Antes disso, é importante lembrar que nenhum movimento em defesa do casamento gay pede autorização para o matrimônio religioso. Nessa área, cada doutrina é livre para estabelecer as regras que bem entender. Luta-se apenas pela autorização do casamento civil, aquele reconhecido pelo Estado e que, por sermos um país laico, deve passar ao largo das convicções religiosas da população.

Todas as grandes religiões monoteístas rejeitam o sexo homossexual. Islamismo, judaísmo e cristianismo consideram-no "antinatural". No Levítico, a Bíblia afirma que "se um homem dormir com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma coisa abominável. Serão punidos de morte...". [A esse respeito, vejam o post "Porque nada justifica a homofobia. Nem a Bíblia" e o filme "Assim me diz a Bíblia"] Para incrementar a rejeição ao tema, as igrejas ainda consideram que o casamento é uma união de amor entre homens e mulheres, para toda vida e com o objetivo de procriar e educar as crianças. Gays, portanto, são incapazes de cumprir inteiramente a missão do casamento. "Em 2 mil anos de história, a Igreja Católica tornou-se uma perita em humanidade. E entendemos como complicada a entrega total entre dois indivíduos do mesmo sexo. A pessoa do homossexual pode ser feliz? Achamos difícil", diz dom José Benedito Simão, doutor em moral e bispo-auxiliar da Arquidiocese de São Paulo.

[Caro dom José Benedito Simão, permita-nos respeitosamente discordar. Entendemos a sexualidade como uma dimensão inerente ao ser humano e indissociável da expressão de sua afetividade, para muito além da mera genitalidade, do mero ato sexual. Ser "gay" é muito mais do que o simples ato sexual entre duas pessoas do mesmo sexo. É a forma mesma como expressamos nosso amor, a forma como constituímos um casal, a forma como vivemos o afeto no maior grau de intimidade e entrega de que um ser humano é capaz.

Por isso, dom José, não podemos acreditar que a nossa orientação sexual seja necessariamente ruim - ou desordenada, como diz o Magistério Católico - em si. Acreditamos que toda sexualidade humana, como aliás todas as dimensões da nossa humanidade, pode ser vivenciada de uma maneira que nos aproxime de Deus ou dEle nos afaste. Quantos casamentos e relações heterossexuais desordenados você conhece? Serão bons e construtivos pelo simples fato de serem entre pessoas de sexos opostos? Enfim... fica para a sua (nossa) reflexão.

Muitos de nós vivem, sim, relações estáveis, maduras, sadias, que nos ajudam a crescer espiritualmente e nos põem em comunhão com Deus. E os que não vivem podem viver; apenas ainda não chegou a hora - como acontece, ou pode acontecer, com qualquer filho de Deus. Afirmar o contrário seria, mais que uma inverdade, uma traição da graça divina e das bênçãos derramadas pelo Senhor sobre nós.
]

Se não há dúvidas sobre a condenação bíblica à homossexualidade, os objetivos do matrimônio parecem ser aliviados pelos religiosos em outras situações. Nenhuma igreja proíbe o casamento de pessoas estéreis, que sabidamente não podem procriar. As escrituras também falam sobre escravos e pena de morte, e nem mesmo os mais devotos seguem à risca esses mandamentos. "A Bíblia precisa ser constantemente reinterpretada. É uma questão de evolução. O Antigo Testamento precisa ser contextualizado a um povo antigo e sua cultura", afirma dom José.

Por que, então, se abrandaram as rejeições para alguns tabus e não para outros? A resposta está fora da Bíblia, afirma o sociólogo da religião Antônio Flávio Pierucci, da USP. Apesar de justificada em valores religiosos, a condenação à homossexualidade é fundamentada num conceito chamado de tradicionalismo pelos acadêmicos. Em geral, temos dificuldade para lidar com questões cujas respostas vão de encontro ao que aprendemos como correto. E não há dúvida que enxergar os homossexuais como iguais é uma novidade radical na realidade dos heterossexuais. "Desde que o mundo é mundo, casamento é entre homem e mulher", diz Antônio. Gays, então, teriam rompido um acordo histórico – homens dormem com mulheres e vice-versa.

O problema é que, segundo a ciência, somos incapazes de escolher e conduzir nossa orientação sexual. Como diz uma piada comum entre gays, homossexualidade não é escolha, mas falta de escolha. Pesquisas sobre o tema apontam para uma mistura de fatores biológicos, psicológicos e socioculturais nos motivos que fazem alguém ser gay (veja quadro na pág 52). Mas todas são unânimes ao afirmar que ser gay não é ideologia, crença ou frescura de meninos malcriados. Independentemente do país, cultura e religião, as estatísticas se repetem mostrando que uma parcela pouco abaixo de 10% da população prefere parceiros de mesmo sexo. Há relatos de práticas homossexuais no passado de culturas tão diferentes com os gregos ou comunidades isoladas de Papua Nova Guiné. Isso faz dos relacionamentos gays um fato tão antigo quanto a civilização humana. E nos obriga a reconhecê-los como parte do convívio em sociedade. "A homossexualidade não precisa ser explicada. Ela apenas existe", escreveu Colin Spencer no livro Homossexualidade: Uma História"

O casamento
Ter direito a se casar é o maior sonho de todos os gays, um marco da aceitação na sociedade, certo? Errado. Existe uma facção do ativismo político homossexual, em sua maioria intelectuais de esquerda, para quem o casamento deixaria os gays ainda mais invisíveis para o restante da sociedade. "O casamento mina nosso objetivo de liberação. Só haverá justiça quando formos aceitos e apoiados independentemente de nossas diferenças em relação à cultura dominante", escreveu a ativista lésbica americana Paula Ettelbrick.

Realmente, parece incrível que os gays estejam brigando pelo casamento. Em pleno século 21, essa desponta como a última causa que grande parte dos héteros escolheria para lutar. Além dos homossexuais, provavelmente apenas as instituições religiosas ainda fazem campanha para que seus fiéis mantenham-se fiéis também a um modelo milenar de relacionamento. Nas últimas três décadas, a taxa de matrimônios caiu 40% nos Estados Unidos. Não é surpreendente, então, saber que a luta pelo casamento homossexual nasceu entre correntes conservadoras do ativismo gay. Editor de Same-Sex Marriage: Pro and Con ("Casamento Gay, Pró e Contra", sem tradução para o português), o jornalista americano Andrew Sullivan é dono de uma das vozes mais ouvidas na defesa da causa. Sullivan é homossexual, conservador, republicano ferrenho, apoiou a Guerra do Iraque e acha que os gays só serão respeitados quando se comportarem como os heterossexuais. Esse tipo de argumento deixa de cabelo em pé ativistas como Paula. Do outro lado, Sullivan e seus companheiros subverteram a ordem do movimento conservador, que ficou dividido entre os que historicamente defenderam intervenções mínimas do Estado na vida das pessoas e aqueles que vêem na imagem de dois barbudos se beijando uma ameaça a valores fundamentais da sociedade.
Adversários do casamento gay dizem que autorizá-lo ameaça a "instituição casamento" e enfraquece os valores de família. Se hoje liberamos para homossexuais, por que amanhã não permitiremos a poligamia? Por que duas pessoas? E por que não três? Os defensores alegam que a união entre homossexuais fortalecerá família e casamento. E que o divórcio é uma ameaça muito maior – e nem por isso deve ser proibido. Na realidade, é difícil medir os efeitos positivos e negativos da legalização, afinal eles envolvem conceitos subjetivos. O que aconteceria com a família? Com o casamento? Depende do que você pensa dessas instituições. O pesquisador americano Stanley Kurtz, do Instituto Hoover, ligado à Universidade Stanford, analisou esses efeitos no artigo The End of Marriage in Scandinavia ("O Fim do Casamento na Escandinávia"), publicado no início do ano. Nele, Kurtz afirma que a tolerância dos países nórdicos à parceria entre gays (o casamento continua proibido) "deu à sociedade a impressão de que o casamento está fora de moda" e que "qualquer unidade familiar, inclusive a produção independente, é aceitável". O resultado disso tudo, conclui Kurtz, é que "o casamento está lentamente morrendo na Escandinávia" – cerca de 60% das crianças que nascem na Dinamarca não são filhas de pais casados.

Kurtz não ofereceu provas de que a culpa pelo quadro seja da união gay, mas constatou que os processos aconteceram no mesmo período. Perto dali, na Holanda, casamentos gays foram legalizados e pouco mudou. Três anos após serem permitidos, a polêmica sumiu das mesas de bar. "Tão logo houve a legalização, ninguém mais falou no assunto", afirma Henk Krol, editor da revista Gaykrant e líder da campanha pró-união. A última diferença legal por orientação sexual, que dava aos héteros preferência para fazer adoções no exterior, foi abolida em fevereiro.

As crianças
A mudança fez da Holanda também o único país a dar pleno direito de adoção para casais do mesmo sexo. E esse é outro tema espinhoso. Gays podem educar crianças sem afetar o desenvolvimento delas? A resposta passa pela própria Holanda: estima-se que o país tenha atualmente 20 mil pimpolhos legalmente adotados por casais gays. Aparentemente, sem traumas. "Todos os estudos no país indicam que paternidade e adoção gay não causam problemas às crianças", diz Rob Tielman, pesquisador da Universidade de Utrecht e uma das maiores autoridades holandesas sobre o tema.
Mas o que é bom para a Holanda não é necessariamente bom para o Brasil. Nossas diferenças culturais, diz Tielman, impedem afirmar que os resultados obtidos lá seriam iguais por aqui. É preciso ter em mente também que ausência de problemas não quer dizer que crianças criadas por gays sejam idênticas às criadas por heterossexuais. "O simples fato de escolhermos um colégio e não outro já tem enorme impacto na pessoa que nossos filhos serão. Toda influência tem conseqüências", diz a psiquiatra Carmita Abdo, do Hospital das Clínicas de São Paulo, que coordenou o projeto "Sexualidade", maior pesquisa sobre hábitos sexuais dos brasileiros. "Quando subvertemos o papel da mulher e ela deixou de cuidar dos filhos em casa para trabalhar muita coisa mudou. Estamos piores? É questão de opinião. Creio que tivemos perdas e ganhos. Mas prever essas alterações antes de elas acontecerem é praticamente impossível."

Apesar da dificuldade, algumas hipóteses podem ser formuladas para os efeitos da adoção gay. A ausência de um referencial do sexo ausente não parece ser problema – segundo Carmita, a criança é capaz de reconhecê-lo em outras pessoas próximas. É o que acontece com filhos de pais solteiros. Gays tampouco induzem crianças à homossexualidade, concluiu mais de uma dezena de estudos diferentes. Outra pesquisa, apresentada pela professora Charlotte Patterson na Associação Americana de Psicologia, em 1995, mostrou que hábitos de crianças criadas por lésbicas eram praticamente idênticos aos dos filhos de heterossexuais. Assistiam aos mesmos programas de televisão, brincavam com os mesmos brinquedos, se relacionavam com os mesmos amigos no colégio. Consenso, no entanto, ainda é uma palavra que passa longe da comunidade científica. Um pool de especialistas que analisou todas as pesquisas disponíveis sobre o tema para o Journal of Divorce and Remarriage ("Jornal do Divórcio e Recasamento") afirmou que todas tinham falhas metodológicas. Acusou pesquisadores dos dois lados de estarem engajados numa causa e terminou espetando: "Não precisamos apenas saber se existem diferenças. Temos uma decisão moral a tomar: a sociedade teria o direito de prevenir a criação de indivíduos que eventualmente seriam mais abertos a comportamentos e relacionamentos homossexuais?".

E se... tivéssemos mais gays no mundo? Certamente veríamos uma parcela da população incomodada ao se deparar freqüentemente com algo que repulsam. Mas talvez esteja nessa tensão a saída para uma convivência harmoniosa. Todos os remédios contra o preconceito envolvem um fator indispensável: tempo. Quando os Estados Unidos permitiram que brancos e negros se casassem, em 1968, 72% da população desaprovava esse tipo de relação. Somente em 1991 é que pela primeira vez a maioria das pessoas afirmou não ver problemas no casamento inter-racial. Aceitar que duas pessoas do mesmo sexo se casem e sejam reconhecidas como família é um ato doloroso para boa parte dos brasileiros. Mas não há outro jeito de termos uma sociedade mais igual. Ser tolerante é um exercício que requer cuidado diário. Exatamente como o casamento.

- Sérgio Gwercman
Matéria de capa da edição 202 da Revista Superinteressante, julho de 2004

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Atualização em 18/08/11:
Descobrimos hoje este post de Carlos Alexandre Lima, em seu blog Direitos Fundamentais LGBT, corrigindo a lista acima de direitos negados aos gays. O post é de 2009 e está um pouco defasado, mas ainda assim vale conferir, aqui. Abs! :-)

Muitos países se “blindam” contra o casamento homossexual


As grandes disputas jurídicas não são simplesmente nacionais: são mundiais. Assim ocorreu, por exemplo, com os debates sobre a codificação. E assim está ocorrendo agora com a nota de heterossexualidade do casamento.

A tensão é percebida entre duas tendências opostas. A primeira é o que, em termos de direito internacional, se chama “efeito dominó”, isto é, a propensão expansiva de uma instituição jurídica, quando é adotada por um sistema político de certa influência sobre outros. Junto a esta tendência expansiva, a adoção, por alguns sistemas jurídicos, do casamento entre pessoas do mesmo sexo produziu uma reação contrária. É o que chamei uma vez de “efeito blindagem”, ou seja, a defesa do casamento heterossexual através da constitucionalização da nota de heterossexualidade.

Qual destas tendências avança com maior rapidez? Contra o que se poderia acreditar, a realidade é que existe um equilíbrio instável modelado por reações e contrarreações que desenham, em minha opinião, um panorama mais próximo da defesa do casamento heterossexual que do avanço do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Prescindindo do tumulto midiático de um ou outro signo, convém que nos atenhamos aos fatos. Um rápido tour d´horizon provavelmente avalizará o que digo. Voltando à Europa, a verdade é que, ainda que os Países Baixos (2001), Bélgica (2003), Espanha (2004), Noruega (2009), Suécia (2009) e Portugal (2010) tenham regulamentado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a corrente majoritária se mostra concessora de diversos efeitos às uniões civis do mesmo sexo, mas não muito receptiva a transformar essas uniões em verdadeiros casamentos. Já vimos a tendência dos países do Leste da Europa a constitucionalizar a nota de heterossexualidade. Em outros países europeus (França, Itália, Alemanha etc.), ainda que o debate se apresente com maior ou menor intensidade, os órgãos legislativos ou jurisprudenciais mantêm uma posição de equilíbrio que não se inclina à concessão tout court do estado matrimonial às uniões civis. Assim, por exemplo, em fevereiro deste ano, o conselho constitucional francês considerou que a proibição do casamento homossexual, tal como aparece no código civil, está conforme à constituição francesa.

A América Latina é um âmbito jurídico em que as reações se produzem com rapidez diante de modelos diferentes. Um exemplo: acabo de voltar do México, onde estive em vários estados, por questões acadêmicas. O único deles em que se aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo é Cidade do México. A reação foi imediata. Os estados de Jalisco, Morelos, Sonora, Tlaxcala e Guanajuato levantaram diante da Suprema Corte a questão da inconstitucionalidade.

Há alguns dias, Obama deu ordens ao Departamento de Justiça para que deixe de apoiar frente aos tribunais a lei federal aprovada em 1996, durante a administração Clinton, na qual se define o casamento como a união legal entre um homem e uma mulher. Esta “lei de defesa do casamento”(DOMA), pela qual nenhum estado está obrigado a reconhecer como casamento uma relação entre pessoas do mesmo sexo reconhecida como casamento em outro estado, foi aprovada em seu momento por uma ampla maioria bipartidária em ambas as câmaras do Congresso. A reação foi imediata. O presidente da Câmara de Representantes anunciou que reuniria um grupo de assessoria legal, formado por membros de ambos os partidos, para defender a DOMA.

O balanço final é que, dos 192 países reconhecidos pela ONU (mais 10 de fato, não integrados oficialmente em tal organização), somente reconhecem o casamento entre pessoas do mesmo sexo 10 países, mais alguns estados isolados do México e dos Estados Unidos. Entre eles, não se conta nenhum país asiático nem africano (salvo África do Sul) e somente um latino-americano e parte de outro. Comparando a demografia desse pequeno grupo de países com a de todo o planeta que rejeita o modelo de casamento entre pessoas do mesmo sexo, a anomalia jurídica ainda está localizada.

Certamente, a prevalência do bom senso e do senso jurídico nesta importante matéria exige – em especial dos juristas – essa qualidade tão própria dos homens dedicados à defesa da justiça, que consiste em manter a firmeza de uma rocha nas convicções, moderando-a com a flexibilidade de um junco em suas aplicações.

- Rafael Navarro-Valls
Fonte: ZENIT via Amai-vos.

Uma coisa de cada vez


Em tempos de tanta polarização e demonização de parte a parte, mais um exemplo de que é possível encontrar vozes sensatas e razoáveis para além dos radicalismos religiosos, mesmo no próprio Magistério da Igreja Católica. Cuidadosamente, Pe. Fabio de Mello adota a estratégia de separar a ideia de casamento (religioso) e o conceito de "família" ("família" segundo a doutrina católica, bem entendido) da defesa dos direitos civis dos gays. "Uma coisa de cada vez", ele diz. Separar as duas discussões parece-nos uma estratégia muito plausível - por mais que acreditemos que o afeto faz, sim, a família, e uma família perfeitamente legítima. Mas, sim, uma coisa de cada vez, sem confusão.

(Dica dos nossos amigos do Projeto Libertos de Verdade)

O massacre de Tibhirine

Ilustração: Albulena Panduri

"Tenho acompanhado a divulgação das reflexões de várias pessoas sobre o filme 'Homens e Deuses' no site do IHU. Gostei de tudo o que li. Fui assistir o filme e escrevi um pequeno artigo com algumas idéias daquilo que observei na história", escreve Eduardo Gabriel, sociólogo e seminarista scalabriniano de São Paulo, SP.

Eis sua resenha, reproduzida via IHU, com grifos nossos. Fica a dica de filme para o fim de semana!

“Homens e Deuses” é daqueles raros filmes que nos apresentam uma inesgotável possibilidade de reflexão. Muito já se comentou sobre o contexto do massacre dos monges trapistas na cidade de Tibhirine, na Argélia, em 1996. A situação política do país era de instabilidade, e ações de violência por parte de grupos extremistas tornava-se cada dia mais freqüente. Diante deste cenário, a tranquila presença dos monges na comunidade local tornou-se completamente insegura. Temendo que pudessem ter suas vidas ameaçadas, os monges franceses colocam em pauta a necessidade de saírem daquele local.

Com o medo de um eventual ataque, alguns monges manifestaram o desejo de voltarem para a França. Porém, nem todos estavam dispostos a abandonar a comunidade, mesmo sabendo que as possibilidades de um massacre eram reais. Partiu do prior o encorajamento para que os monges decidissem ficar, levando até às últimas consequências o sentido da fé cristã e da vocação à vida religiosa.

Esta fragilidade aparente de alguns monges ao quererem sair daquele lugar é a grande riqueza deste episódio retratado no filme, que nesta pequena reflexão chamo atenção para o grande sentido vocacional que isto representou.

Com o agravamento da situação, o prior convoca uma votação determinante para decidir sobre a permanência ou saída dos monges de Tibhirine. A grande surpresa foi que todos votaram a favor de que continuassem na Argélia. Os que estavam receosos de permanecerem ali por conta do contexto de violência, depois de rezarem, decidiram finalmente que permanecer seria demonstrar o verdadeiro sentido do anúncio cristão.

Quero chamar atenção para o “medo” de permanecer que tomou conta de alguns monges. A vontade de abandonar um local de risco revela uma das essências da humanidade: a fraqueza. A decisão de permanecer só foi possível diante da demonstração da fraqueza na fé que alguns monges temerosos, queriam apenas preservar suas próprias vidas.

Assim, o massacre dos monges trapistas em Tibhirine nos apresenta um elemento fundamental da vocação à vida religiosa: também a fraqueza. Será que um aspirante à vida religiosa terá a coragem de acolher integralmente a fraqueza para assumir sua vocação?

Durante a madrugada os monges foram sequestrados por um grupo extremista. A intenção do sequestro é negociar a libertação de líderes daquele grupo presos na França. O filme é encerrado com uma cena real e simbólica dramática, que mostra monges caminhando sob uma forte nevasca rumo ao massacre. Isto tudo tem muito a nos ensinar. Não existe testemunho cristão e entrega à vida religiosa sem passar pela exaltação da fraqueza, seguido de um percurso frio...

No mundo em que vivemos todos nós somos orientados a construir aspirações certeiras e vitoriosas, como se estas fossem as legítimas condições para se viver em sociedade. Parece-me que, por pressões, também o estímulo à vocação religiosa entrou neste devaneio insano. Acredito que poderíamos ter bons testemunhos de fé na vida religiosa se a fraqueza, o medo e a insegurança da permanência fossem estimulados a se manifestar. Se acontecer isto, estou certo de que teremos mais vocações semelhantes as quais vimos no massacre em Tibhirine: permanecer até o fim no conflito para tentar construir o diálogo da paz!

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Dar e receber


Difícil coisa no amor
é saber dar: o gesto
lavado, isento de preço.
Mais difícil receber:
descobrir dentro da dádiva
nada mais do que a alegria
do amor que no amar se cumpre.


- Thiago de Mello

"Duvido, logo creio"

Ilustração: Fernando Degrossi

"Em que você acredita?". Para responder à pergunta de um interlocutor virtual, Antonio Thellung transcreveu as páginas do seu itinerário existencial nos capítulos de seu livro "Una saldissima fede incerta" [Uma inabalável fé incerta] (Edizioni Paoline, 316 páginas). A reportagem é da revista italiana Adista Notizie, nº. 41, 28-05-2011, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A pergunta o persegue por toda a sua vida, e, durante toda a sua vida, Thellung, buscando uma resposta simples a uma pergunta ousada, libertou do arquivo dos seus pensamentos "uma reação em cadeia, que, a partir de pequenas explosões iniciais, se assemelha cada vez mais a fogos de artifício fantasmagóricos".

Assim como os ofícios mais disparatados da sua vida (piloto de corrida, pintor, escritor, cuidador de doentes terminais, fundador de comunidades). Assim como seus pensamentos cotidianos, suas perguntas, suas certezas e suas incertezas, as inquietações e as aparentes seguranças: justamente, fogos de artifício.

Nas páginas deste livro, Thellung vasculha o seu percurso, os atritos com o seu credo e a sua fé, enquanto vai se confrontando com todo o sistema da teologia tradicional que tem Deus por "objeto", a sua encarnação em Jesus e a sua "presença" em toda criatura humana.

As animadas páginas de Thellung, em certas passagens muito carregadas de argumentações e de deduções não completamente e nem sempre consequentes, no entanto, têm o poder de animar profissões de fé "inertes" e recitações diárias do Credo, além de provocar úteis debates.

Eis a entrevista.

Um livro sobre a fé pode ter um interesse concreto na atualidade?
Acredito que seja urgente se interrogar sobre em que se pode realmente crer hoje, porque as muito abundantes violências cotidianas dependem, pelo menos em grande parte, da persistência de muitas, muitas imagens divinas violentas, que dividem ao invés de pacificar. Por isso, é muito importante revisitar as imagens e os conceitos divinos (ou os pontos de referências) ainda propostos.

Mas já não se falou sobre isso, e desde sempre?
Talvez. Mas acredito que cada mundo é obrigado a prestar contas dos resultados de sua própria busca. Como dado inicial, por exemplo, parece-me que habitualmente se usam os termos "crer" e "ter fé" como sinônimos, embora haja entre eles uma diferença substancial: fé é sentir-se irresistivelmente atraído por alguma coisa, enquanto crer pertence à esfera racional. Os dois aspectos podem coincidir, mas também podem entrar em contradição. Ou seja, pode-se crer sem ter fé, ou ter fé com muitas dúvidas sobre em que acreditar. Por exemplo, dogmatismos e anátemas fazem parte do crer (ou do não crer), enquanto, geralmente, tem muito pouca influência sobre o lado da fé. Levar isso em conta pode ajudar a entender melhor o porquê de tantas contradições presentes na história do cristianismo.

Para sair do genérico, quais tipos de imagem divina lhe parecem ser propostas hoje?
Deus existe, Deus não existe: ouvimos isso ser repetido frequentemente de vários modos, porém, sem a preocupação de especificar seus contornos. Vai-se das imagens mais indefinidas até aquelas mais antropomórficas. As diferenças convivem também entre os frequentadores habituais das paróquias, e basta fazer algumas perguntas para perceber isso. Por isso, me parece ser necessário identificar alguns pontos específicos.

Acima de tudo, penso eu, se Deus existe, o primeiro a saber disso deve ser ele. Por isso, a primeira característica divina me parece ser a consciência do seu próprio ser. O que significa que a diferença entre um crente e um ateu é entre crer ou não crer que, além das nossas consciências limitadas e relativas, existe também uma consciência em nível absoluto (transcendente). E, depois, se levarmos a sério que Deus é tudo em todos (como diz São Paulo), então me parece que a única relação imaginável é de total imersão nele, no seu todo.

E como seriam as relações entre os seres humanos e esse Deus no seu todo?
Em um sentido conceitual, eu diria que seriam equivalentes às entre absoluto e relativo, que são contrários mas não contrapostos. Ou melhor, são contrários e complementares ao mesmo tempo, porque não podem ser separados. A dispersão dos fragmentos, em suma, deve ser sempre compreendida na unidade do grande todo.

Para dar um exemplo atual, imaginemos um grande computador formado pela unidade central e por inumeráveis operadores terminais, que atuam todos com os mesmos softwares. No entanto, enquanto cada terminal vive e trabalha no seu próprio individualismo, a unidade central os conhece pessoalmente a todos, reelaborando seus dados na memória do todo. O que dizer, em essência, que a realidade do todo tem duas interfaces diferentes e complementares: de um lado, a humana, fracionada, contraditória, temporária (e, portanto, instável), e, de outro, a divina, apenas vagamente dedutível por nós, mas expressão permanente de toda a realidade no seu todo. Penso que os seres humanos devem ser considerados como porções temporárias de Deus que, de pontos de vista limitados, vivem todas as experiências possíveis, bonitas ou feias que sejam. Enquanto, do seu ponto de vista, Deus diz: "Sou sempre eu". Nós não percebemos isso porque temos viseiras, mas os místicos conseguem intuir isso e viver em conformidade.

Mas quais as consequências a julgar pela abundância de conflitos em nível global?
Não nos esqueçamos de que também há muitos acontecimentos positivos e muitas pessoas capazes de sair do seu egocentrismo. No entanto, tendencialmente, permanece, infelizmente, uma mentalidade dualista que não leva em conta a existência de um único grande todo unitário. Uma mentalidade que tende a dividir entre bem e mal, e, portanto, entre bons e maus. Mas, ao contrário, a divisão é entre bem absoluto e bem relativo, que pode ser contraditório e ambíguo o quanto se quiser, mas sempre pertence à única realidade. A ideia de que o bem deve lutar contra o mal é um equívoco colossal, que produziu graves danos. Quanto mal foi feito em nome do bem? As piores atrocidades da história foram cometidas com boa fé. Em um cristianismo do todo, o mal não deve ser derrotado, humilhado, destruído, morto, mas sim transformado. É difícil? Talvez, mas é a única saída possível.

E a Igreja, que parte tem em tudo isso?
Não se pode ir sozinho rumo à integração com o todo. Por isso, a comunidade eclesial é indispensável. A Igreja de Jesus Cristo é um barco sobre o qual navegamos juntos, ortodoxos e hereges, prepotentes e mansos, perseguidos e perseguidores, trigo e joio. É comunhão dos consensos e dos desacordos, da ortodoxia e das heresias. O importante, acima de tudo, é celebrar juntos. Onde se encontra um outro ambiente que oferece uma liturgia (a missa) durante a qual, no momento da comunhão, pessoas muito diferentes entre si vão fazer todas juntas algo que nenhuma delas entende? Pessoalmente, acho que é um impulso emblemático para a integração com o divino. Além disso, acrescento que um cristianismo do todo, a meu ver, pode recuperar todos os mais importantes conceitos teológicos tradicionais, redescobrindo o seu significado de modo compreensível hoje.

Mas o senhor realmente acredita nas hipóteses que descreveu neste livro?
Sou o primeiro a dizer que as descrições são discutíveis e também provavelmente contestáveis. Mas acho que os significados são muito convincentes.

Aos jovens do século XXI


"Vós sois o sal da terra...
Vós sois a luz do mundo"
- Mt 5, 13-14

Da homilia do Beato João Paulo II na missa de encerramento da XVII Jornada Mundial da Juventude, 28/07/2002:

Jovens: (...) o mundo que vocês vão herdar tem, desesperadamente, necessidade de um sentido renovado da fraternidade e da solidariedade humanas. Trata-se de um mundo que precisa de ser sensibilizado e curado pela beleza e pela riqueza do amor de Deus. O mundo contemporâneo precisa de testemunhas deste amor. Ele tem necessidade de que vocês sejam o sal da terra e a luz do mundo. O mundo tem necessidade de vocês, precisa do sal, de vocês como sal da terra e como luz do mundo!

(...) O sal tempera e dá sabor à comida. Seguindo Cristo, vocês devem transformar e melhorar o "sabor" da história humana. Com a sua fé, esperança e amor, com a sua inteligência, fortaleza e perseverança, vocês devem humanizar o mundo em que vivemos. Na primeira leitura de hoje, já o Profeta Isaías nos indicava a maneira de realizar isto: "Acabar com as prisões injustas... repartir o pão com quem passa fome... se tirares do meio de ti... o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa... Então, a tua luz brilhará nas trevas" (58, 6-10).

Até mesmo uma pequena chama pode dissipar o obscuro véu da noite. Quanto maior será a luz que vocês farão se, todos juntos, vos unirdes como um só na comunhão da Igreja! Se vocês amam Jesus, amem a Igreja! Não desanimem perante os pecados e as faltas de alguns dos seus membros. O dano que alguns presbíteros e religiosos causam aos jovens e às pessoas vulneráveis enche-nos de um profundo sentido de tristeza e de vergonha. Contudo, pensem na vasta maioria dos sacerdotes e religiosos dedicados e generosos, cujo único desejo consiste em servir e em praticar o bem! (...) Nos momentos difíceis da vida na Igreja, a busca da santidade torna-se ainda mais urgente. E a santidade não é uma questão de idade; trata-se de viver no Espírito Santo (...).

(...) Juventude de espírito, juventude de espírito! Embora eu tenha vivido no meio de muitas trevas, sob duros regimes totalitários, tive suficientes motivos para me convencer de maneira inabalável de que nenhuma dificuldade e nenhum temor é tão grande a ponto de poder sufocar completamente a esperança que jorra sem cessar no coração dos jovens.

Vocês são a nossa esperança, os jovens são a nossa esperança! Não permitam que esta esperança morra. Comprometam a sua vida com ela. Nós não somos a soma das nossas dificuldades e falhas; constituímos a soma do amor do Pai por nós e da nossa capacidade concreta de nos tornarmos imagem do seu Filho.

Termino com uma oração:

Ó Senhor Jesus Cristo,
Conservai estes jovens
no vosso amor.
Permiti que ouçam a vossa voz
e acreditem naquilo que dizeis
porque somente Vós tendes
palavras de vida eterna.
Ensinai-os a professar a sua fé,
a manifestar o seu amor
e a transmitir a sua esperança
aos outros.
Fazei deles testemunhas
convictas do vosso Evangelho
num mundo tão necessitado
da vossa graça salvífica.
Fazei deles o novo povo
das Bem-Aventuranças,
a fim de que possam ser
o sal da terra
e a luz do mundo no início
do terceiro milénio cristão!
Maria, Mãe da Igreja,
protege e guia estes jovens
e estas jovens do século XXI,
conservando-nos a todos
junto do teu Coração maternal!

Amém!

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Vista cansada


Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi o outro escritor quem disse.

Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida de quem não crê que a vida continua. Não admira o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu enquanto pôde do desespero que o roia – e daquele tiro brutal.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não vendo.

Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê.

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer. Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência.

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem.

Mas há sempre o que ver: gente, coisa, bichos. E vemos? Não, não vemos. Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê.

Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas.

Nossos olhos se gastam, no dia-a-dia, opacos.

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

- Otto Lara Resende

Para refletir:

1. Jo 4, 6-10
Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.
Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai; e já desde agora o conheceis, e o tendes visto. Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta. Disse-lhe Jesus: Estou há tanto tempo convosco, e não me tendes conhecido, Filipe? Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras.


2. Jó 9, 1-11
Então Jó respondeu, dizendo: Na verdade sei que assim é; porque, como se justificaria o homem para com Deus? Se quiser contender com ele, nem a uma de mil coisas lhe poderá responder.
Ele é sábio de coração, e forte em poder; quem se endureceu contra ele, e teve paz?
Ele é o que remove os montes, sem que o saibam, e o que os transtorna no seu furor.
O que sacode a terra do seu lugar, e as suas colunas estremecem. O que fala ao sol, e ele não nasce, e sela as estrelas. O que sozinho estende os céus, e anda sobre os altos do mar. O que fez a Ursa, o Orion, e o Sete-estrelo, e as recâmaras do sul. O que faz coisas grandes e inescrutáveis; e maravilhas sem número.
Eis que ele passa por diante de mim, e não o vejo; e torna a passar perante mim, e não o sinto.


Pergunta: Você consegue ver as marcas de Deus no seu caminho?

Reproduzido via Centro Loyola de Fé e Cultura

Justiça amiga dos gays

Ilustração: Aluísio Cervelle, 
para a Revista Superinteressante

Virou mania nacional: bater no deputado carioca Jair Bolsonaro se tornou atividade favorita de 10 entre 10 defensores da igualdade e da tolerância. Pudera. Em entrevistas, Bolsonaro soltou uma avalanche de disparates: “Eu sou contra a adoção por casais homossexuais. Se um de nós for criado por um homossexual, com certeza vai ser um homossexual”. E logo depois comparou gays com ladrões: “É o fim da família, o fim do respeito. Vocês também não iam gostar de ter um filho ladrão. Fere os princípios éticos e morais”. O preconceito contra gays não é novidade – mas parece estar piorando. Em abril, um estádio de vôlei inteiro vaiou e xingou de “bicha” e “viado” o jogador Michael dos Santos, do time Vôlei Futuro, que é gay assumido. Uma pesquisa feita pelo Grupo Gay da Bahia concluiu que o assassinato de homossexuais no Brasil subiu 31% no último ano e chegou a 260 casos. E outra, da Fundação Perseu Abramo, mostra que 64% das pessoas acreditam que casais de gays e lésbicas não deveriam andar abraçados ou se beijar em locais públicos e que apenas 24% pensam que os governos deveriam ter a obrigação de combater a discriminação de homossexuais. Para 70% “isso é um problema que as pessoas têm de resolver entre elas”.

Mas não é isso que pensam os gays – para eles, a discriminação é um problema que tem de ser resolvido na Justiça. E é lá que eles estão conquistando seu espaço. Veja o caso do bancário aposentado José Américo Grippi. Em fevereiro deste ano, aos 66 anos, ele se tornou o primeiro homossexual a conquistar na Justiça Federal o direito de receber pensão militar. Grippi viveu por 35 anos com o capitão Darci Teixeira Dutra, morto em 1999, e brigou pelo direito ao benefício, inicialmente negado pelo Exército. “Nosso amor não era banal, era sincero”, declarou Grippi - e, assim como em qualquer casal hétero, recebeu seus direitos de viúvo. No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a guarda de duas crianças a um casal de lésbicas de Bagé. Os filhos haviam sido adotados por Luciana Maidana e eram criados desde 1998 com a ajuda da companheira dela, Lídia Guteres. Com a decisão, se uma das duas morrer, a outra ficará com as crianças, que de outra forma seriam consideradas órfãs. E não para por aí: nos últimos anos, decisões da Justiça permitiram que gays exercessem o direito de incluir o companheiro no plano de saúde, de ganhar pensão por morte e de declarar o imposto de renda em conjunto.

Essas vitórias no Judiciário estão cumprindo o papel que as leis não cumprem: tratar homossexuais e heterossexuais da mesma maneira. Afinal, é muito mais fácil fazer um juiz decidir a favor dos gays do que a maioria do Congresso aprovar uma mudança na lei. Hoje em dia a Constituição determina que o casamento civil aconteça apenas entre homem e mulher. Mas, segundo a Comissão da Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil, tribunais de todo o país já reconheceram em pelo menos 1 026 processos a união entre pessoas do mesmo sexo. Em muitos desses casos, ficou entendido que houve união estável do casal e que, já que todos são iguais perante a lei, não haveria por que tratar os gays de forma diferente. Assim, pelas beiradas, homossexuais estão garantindo o direito de ser tratados igualmente. Mais importante do que isso: essas decisões favoráveis abrem jurisprudência, ou seja, acabam servindo de referência para outros juízes ao julgar casos semelhantes. E vem mais por aí. Ainda neste semestre os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal devem decidir sobre a constitucionalidade da união [estável] homossexual no Brasil. Três deles já se manifestaram publicamente a favor da questão. Se ficar decidido que a união gay é constitucional, isso pode ter influência em decisões sobre questões de herança, de seguros e de paternidade – quase todas as áreas da vida.

Mas isso não significa que a questão ficará resolvida. Por mais importante que seja a vitória no STF, ela só serviria de referência para juízes de instâncias inferiores. Para que gays sejam realmente tratados como iguais, só mesmo com uma mudança na lei. Segundo a especialista em direito homoafetivo Maria Berenice Dias, atualmente há 108 direitos não assegurados aos homossexuais. Caso o casamento entre parceiros do mesmo sexo fosse aprovado no Congresso, todos esses direitos seriam reconhecidos automaticamente. Se isso acontecesse, pessoas como Bolsonaro se tornariam figuras do passado – coisa que, do ponto de vista da Justiça, elas já são.

- Vanessa Vieira
Artigo publicado na Revista Superinteressante, edição 291, maio de 2011

Os perigos do clericalismo


O clericalismo sofreu um duro do golpe do Concílio Vaticano II quando enfatizou o sacerdócio de todos os fiéis e o batismo comum. Mas há evidências de uma reação clericalista entre alguns seminaristas de hoje e recém-ordenados.

Publicamos aqui o editorial da última edição da revista católica britânica The Tablet, 21-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto e revisado pela IHU On-Line. Os grifos são nossos.

Eis o texto.

Ser contra o clericalismo não é o mesmo que ser anticlerical. Este último significa a forte resistência secular ao poder social e político da Igreja Católica. O clericalismo tem a ver com uma ênfase excessiva no papel do clero nos assuntos internos da Igreja. Ele implica em elitismo clerical, na superioridade do sacerdócio sobre os leigos.

O anticlericalismo, como um conceito da política da Europa continental, passou, de alguma forma, do seu prazo de validade. Mas o clericalismo ainda está muito na moda, como um conceito-chave na análise dos fatores culturais que deram origem ao escândalo dos abusos sexuais clericais dentro da Igreja Católica. Tornou-se quase de rigueur que os líderes da Igreja digam que são contra o clericalismo nesse contexto.

O clericalismo sofreu um duro golpe por parte do ensino do Concílio Vaticano II, quando ressaltou o sacerdócio de todos os fiéis e o batismo comum. Mas há evidências de uma reação clericalista entre algumas das pessoas que estão recebendo formação para o sacerdócio ou que foram recém-ordenados.

No vestuário e na atitude, alguns deles parecem ansiar – quase narcisicamente – por uma restauração do elevado status do padre que caracterizava a vida paroquial nos anos 1950. Uma forma mais suave de clericalismo ainda está aparente nas estruturas diocesanas e no próprio Vaticano, onde poucos leigos podem ser encontrados, e geralmente em posições relativamente inferiores. E o clericalismo automaticamente marginaliza ou exclui as mulheres.

Às vezes, ele também está implícito na motivação daqueles que pressionam pelo retorno do rito tridentino ao uso geral. Enquanto o novo rito da missa pós-Vaticano II enfatiza a Eucaristia como uma atividade compartilhada por toda a comunidade, a missa proposta a partir do Concílio de Trento coloca mais peso sobre a separação de papéis, com o padre ativo, e a congregação assistindo passivamente.

O Vaticano continua colocando munição nas mãos do lobby pró-tridentino na Igreja, como na última instrução Universae Ecclesiae, emitida pela Comissão Pontifícia Ecclesia Dei. Será que ele não percebe o quanto isso vai incentivar as tensões de divisão na Igreja e um espírito de rebelião reacionária contra a autoridade episcopal local, sem falar do renascimento de um clericalismo misógino e elitista?

O restabelecimento do rito tridentino foi concebido para unificar a Igreja e reconciliar aqueles que se encontram afastados dela. Há um perigo real de que ele tenha o efeito oposto. Se os bispos não estão alarmados com isso, eles deveriam estar.

Enquanto isso, a mais recente instrução da Congregação para a Doutrina da Fé referente ao tratamento das denúncias de abuso clerical se move na direção oposta. Ela reconhece que, enquanto os bispos não podem fugir de suas responsabilidades, também não podem ter uma lei específica para si mesmos nesses assuntos. As conferências episcopais nacionais estão sendo exigidas a elaborar linhas diretrizes e a submetê-las ao Vaticano.

A importância da cooperação com as autoridades seculares, como a polícia, é enfatizada, embora a Congregação para a Doutrina da Fé curiosamente só enfatize o dever de comunicar todos os casos em que isso já é exigido por lei. Ela precisa ser mais ampla do que isso: em muitos países não existe a obrigação de denunciar um crime. Com exceção disso, a instrução move a Igreja para o mundo real, em que uma prática melhor (como na Inglaterra e no País de Gales, talvez) seja o padrão comum. Como resultado, a Igreja será muito menos clerical – e mais segura.

Quem nos condenará?


Quem poderá nos condenar? 
- Rm 8, 33-34

Escutando as pessoas – cara a cara – me pergunto com freqüência de onde lhes vem esse sentimento de “SER CONDENADO”, esse medo de culpabilidade que não tem nada a ver com o pecado.

O pecado é uma ruptura consciente com Jesus Cristo, é fazer uso do outro, fazer do outro uma vítima de si mesmo – isto é pecado.

Em cada ser se recapitulam todas as tendências da Humanidade – o melhor e o pior. Porém isto não é pecado. Sem, sem exceção todas as tendências – as mais e as menos, as boas e as más – coexistem em cada ser humano: as aspirações à generosidade ou ao assassinato, o desejo de que alguém desapareça, todas as tendências afetivas, do amor ao ódio, tudo em um só ser.

Impressiona já desde criança até a idade adulta, o descobrir em si a potencialidade das tendências humanas. Em certas pessoas, o descobrir de si mesmo, sem ter ninguém que as escute, que compreenda essa descoberta, a sós consigo mesmo, provoca uma angústia de existir que vai numa autodestruição – inclusive até ao suicídio. Chega-se a se considerar como um monstro, um condenado vivo.

Quem nos condenará?
As normas da sociedade? As Leis Religiosas?

Em todos os tempos, as sociedades engendraram normas e leis de autodefesa, de culpabilidades, com o objetivo de moldar a pessoa – UMA NORMALIDADE LEGAL, por exemplo. Antes de Cristo, o pequeno povo de Israel, ameaçado, queria assegurar a sua sobrevivência; então, cria a lei contra a mulher estéril com uma condenação de “amaldiçoada por Deus”: posto que não procria, não entra nas regras sociais. É menosprezada e vive em constante vergonha.

Para o Evangelho, entretanto, não há uma normalidade ou anormalidade, o que há são pessoas à imagem de Deus. Para o Evangelho há somente uma norma – a vida por excelência em Cristo Ressuscitado.

Se nos estimulamos um ao outro para retomar cada dia a marcha até o Ressuscitado, se chegamos até a dominar nosso corpo em vista a isso, é com o objetivo último de conformarmos à imagem e semelhança de Cristo, e não por imposição de uma lei.

Quem poderá nos condenar, se Cristo Ressuscitou e intercede por Nós?

Ele intercede por nós e não sabemos como orar, mas Ele não nos condena. Ele ora por cada pessoa, não castiga jamais. Ele intercede por nós muito mais do que supomos ou imaginamos. A nós, cabe-nos dispor tudo em vista a essa libertação – deixar Deus rezar em mim. Assim abrimos as portas à contemplação do Reino.

É então, em nossa busca – mesmo aquela cheia de silêncios de Deus – que pressentimos essa realidade essencial: a luta do ser humano encontra sua fonte em outra luta, inscrita nas profundezas de nós mesmos, nesse lugar único, nesse lugar onde ninguém se assemelha a outro.

Quem poderá nos condenar?

Jesus intercede por nós. A toda pessoa que vive o arrependimento sincero no coração, o Ressuscitado oferece perdão e libertação.

E agora, na luta pela Liberdade Humana, o lugar do Cristão é a linha de frente, é um não esconder-se na retaguarda da Humanidade – luta e contemplação. Toda pessoa cristã está chamada a viver a imagem de um guerreiro que não duvida de passar a noite inteira em silêncio, ajoelhado ante o sacrário da vida, consagrada na Ressurreição.

Vigiai e Orai
Quem poderá condenar se Cristo é por nós?

Não resta senão entrar, passo a passo, no túmulo vazio do Senhor e ali se preencher de Amor, mesmo que nosso coração nos condene.

Deus é Maior que nosso coração possa entender, pois DEUS É AMOR.

- Irmão Roger (Taizé)*, 1973
Fonte: Centro Loyola de Fé e Cultura. Grifos nossos.

Texto: Jo 20, 1-10
Para nossa fé, é fundamental um encontro pessoal com Cristo?
O Evangelista responde dizendo que não é necessário uma série de provas. Pretende nos expor como exemplo de fé e disposição em crer, na força divina do Ressuscitado que emanou Daquele vazio do túmulo.

Para Meditar:
Quantos vazios e silêncios de Deus já me fizeram crer, ou ainda necessito de provas?

* * *

QUATRO PASSOS DA ORAÇÃO
I – Leitura atenta para conhecer o texto e o contexto. Ajuda nisso buscar outras fontes tais como as notas ao pé da página, comentários, etc. Para ir descobrindo os aspectos que envolvem o texto, o autor, a sociedade onde e quando foi escrito.

II – Interiorizar meditando e/ou contemplando o que o texto inspirar. O silêncio e a solidão nos ajudam nesse processo de compreensão do que a Palavra de Deus nos propõe.

III – Tempo forte da oração em que dialogamos com Deus sob inspiração do Espírito. Questionamentos, descobertas, súplicas e agradecimentos, razão e emoção, esperanças e silêncios, tudo isso soma-se na oração. É a vida à Luz da Palavra e a Palavra iluminando a Vida.

IV – Oração Final e comprometer-se no amor de Deus a amar melhor em tudo e em todos ao seu redor, elaborando o seu “Diário Espiritual”.

OBS.: É importante manter uma fidelidade a um tempo diário de oração, dispondo-se com generosidade para com o Deus Trinitário.

_______________
*O irmão Roger Schutz, suíço de confissão cristã calvinista, quando era jovem ajudou muitos judeus a escaparem do Sul da França à Suíça. Terminada a guerra ficou vagando como tantos outros, passou uma noite numas ruínas que de manhã, viu que se tratava de uma igreja. Sentiu-se chamado a reconstruí-la e começou o trabalho, logo depois conseguiu a ajuda de outros jovens, cristãos católicos, luteranos, etc. Um dia decidiram viver o Evangelho radicalmente. Hoje passam pelo Mosteiro de Taizé e sua igreja de Nossa Senhora da Reconciliação de 5 a 6 mil jovens cada fim de semana, e entre 50 e 100 mil em Semana Santa. Em sua última visita, João Paulo II, começou a falar dizendo: “venho aqui, como vem o peregrino, a beber da fonte sempre clara do Evangelho”. (Fonte: Amai-vos)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

"O amor dos homens", Elisa Lucinda


Semana passada, ia eu andando pela Avenida Paulista e, como era bom admirar tantos casais imprevisíveis, inter-raciais. Muito japa com preto, coisa rara de se ver no Rio de Janeiro. Entre tanta gente, meu olhar mais se fixava nos gays. Vi uma menina beijando outra, tão meigas, tão doces; sincera a cena me pareceu. É bonito e democrático sentir e compartilhar a presença do amor entre homens e entre mulheres, mãos dadas na urbanidade. Reparo e curto, pois não estou acostumada a ver o homo- amor assim pelas ruas; (será que vão pensar que é um tipo de sabão em pó só para amantes?). Acho que falta esse tipo de amor como romance. Não se vê nas telenovelas uma história normal, um idílio entre iguais em gênero. O amor, para que saibam, não é um privilegio de héteros. Assim fosse, seria proibido com eficiência que se apaixonassem e se queressem. Mas não, o que o famoso senso comum, a moral dominante e as leis conseguiram era impedir a oficialização das uniões, mas não às uniões. Faltam mais filmes no circuito popular, mais circulação de livros sobre o amor entre os do mesmo sexo. Não precisa ser só vídeo de sacanagem e na hora da sacanagem. São histórias de amar como qualquer outra. E o amor é lindo onde estiver. Prefiro milhões de vezes assistir ao lindo segredo de Brokeback Mountain do que ao amor entre uma mocinha boba e um vampiro e suas sangrias. Todo mundo sabe que vampiro não é bom partido para ninguém. Portanto se apaixonar e ter como príncipe aquele que nos chupa o sangue, pode não ser educativo para uma mulher cuja sociedade ainda não admite que o homem não seja seu dono absoluto.

Tenho tantos amigos gays e isso não me incomoda nada. Qual o problema de existir quem se queira e seja do mesmo sexo? Por que isso ameaça tanto? O que realmenta ameaça? Já é hora da civilização, que se acha tão moderninha, se perguntar essas coisas de gente grande. Ter uma conversinha consigo mesmo e parar de dar bandeira, de se tornar tão vulnerável, de se sentir tão ultrajada pelo amor entre iguais. Se eu namorasse alguém assim, homofóbico, obsecado pelo tema, eu ia avaliar com mais profundeza a masculinidade dele. Ninguém faz vestibular para escolher seu objeto de amor. Quando se sabe que se é, já se é há muito tempo.

Conheço mil relatos de meninos que, aos onze ou até antes, se surpreenderam quando perceberam o desejo pelo coleguinha. Criados para casarem com a namoradinha, no horror desta descoberta de ser portador de tão horroroso pecado, os pequenos gays vivem com muito medo desta verdade da qual por não saberem que não é um erro, também não sabem que não são culpados! Na minha infância quando a fofoca do bairro comentava: menina o Zé Maria, virou, né? Minha avó, mesmo sendo católica e apostólica, dizia logo sem surpresa: “ah, isso é mais antigo que Roma!” Pura verdade. Não houve um ano, que eu saiba em que se disse do ADVENTO da homossexualidade. Sempre houve e é dos humanos e alguns outros animais. Sempre houve, só que mais escondido que hoje. Tinham, quando homens, que se casar com uma mulher, desejando o irmão dela. Ou, se mulheres, sonhando com a cunhada. Quando finalmente é permitida aos gays a união oficial e oferecido às escolas um conteúdo de educação de gêneros que não exclua nem discrimine as relações homo-afetivas, estamos falando de Direitos humanos! Se eu preferisse mulheres eu ia andar, mesmo que fosse na Paulista com medo de ser agredida por que estou apaixonada pela minha namorada e o demonstro na rua como fazem os casais onde o amor está vivo e permitido. Por isso é inadmissivel que o Bolsonaro, ocupando um cargo federal, recebendo salário pago pelo povo, traia este povo com tantos absurdos. Bizarras atitudes e palavras o tem exposto aos que ele representa, da pior maneira. Cabe ao parlamentar, é de sua competência, representar o povo, pelo povo e para o povo que o colocou ali através do voto. E se um viado desavisado votou nele? (desculpem, não podia perder a rima e a graça). E ainda que não tenha votado, o que acho difícil, isto não importa. Governa-se para todos. Pra mim é grave o que estamos assistindo. Creiam-me, os que respeitam a liberdade pela qual tantos morreram para conquistar: Quanto mais brancos se posicionarem e não facilitarem a disseminação do racismo, melhor para todos; quanto mais homens contra a violência doméstica, quanto mais héteros se declarando pelos direitos dos gays, mais reforço e credibilidade ganham os temas . Senão, pode parecer papo de gueto. Tanta violência na TV, nos computadores, incitando e ensinando a violência seguida de morte e isso não incomoda tanto quanto o romance entre os homossexuais. Arma de fogo é que não é normal. Há uma flor que se chama Amor dos Homens. Meu coração não suporta guerras. Prefiro a flor e o amor dos homens.

- Elisa Lucinda

O professor: recurso mais importante no combate à homofobia na escola


Lembra que eu disse aqui como fiquei feliz com um trabalho sobre transexualidade no estágio? Pois é, alegria de gay dura pouco. Esta semana o tema da aula eram as políticas de reparação e reconhecimento de grupos minoritários. O professor fez um paralelo entre a lei contra o racismo de 1989 e o Projeto de Lei Complementar 122 que, entre outras discriminações, confere o mesmo status de crime às manifestações homofóbicas de que gozam as racistas.

Disse que gostaria de um debate sobre as semelhanças e diferenças a respeito destas duas formas de discrimanção. Mas o que fez, de fato, ao longo de toda a aula foi defender que o projeto contra a homofobia era contrário à liberdade de expressão. A lei contra o racismo teria consagrado uma postura unânime da sociedade sobre o tema, enquanto a questão da homofobia é bastante controversa. Pra coroar, citou apenas uma parte do texto do projeto de lei e pôs no quadro o manifesto inteiro da Faculdade Presbiteriana Mackenzie, sublinhando a parte em que se afirma que nem toda manifestação contrária aos homossexuais é homofóbica. Citou ainda Bolsonaro e Marcelo Crivella. Ele chegou ao ponto de apelar para a questão do humor, quase dizendo que fazer piada das minorias era algo absolutamente inocente. Lembrei de um professor meu da faculdade que, em sua dissertação de mestrado sobre as travestis, afirma que as piadas e os risinhos vão criando o ambiente que ajuda a apertar o gatilho.

Desde quando a liberdade de expressão é um valor absoluto ao ponto de se permitir a degradação da dignidade humana de outros cidadãos que gozam do direito não só à vida e integridade física, mas também à sua imagem? Dizer que o repúdio ao racismo era já consenso na sociedade brasileira e por isso a lei consagrou uma atitude social já consolidada? Para que a lei então? Eu cresci vendo na televisão piadas sobre negros, pegando elevadores sociais nos quais as empregadas domésticas e porteiros, muitos deles negros, eram impedidos de entrar. Tudo isto foi mudando graças à maior consciência sim, mas muito por causa do instrumento coercitivo que a lei proporcionou a quem era discriminado.

Fiquei com pena dos alunos, alguns visivelmente gays. Mais do que material didático contra a homofobia, é urgente que se invista na sensibilização dos professores em relação à questão.

No encontro com o outro, é o próprio Deus que tocamos

Foto: Paul Zizka

A Igreja Católica celebra hoje a festa da Visitação de Maria (Lc 1, 39-56), e em seu post de hoje nosso amigo Teleny nos propõe preciosas reflexões, das quais selecionamos uma para reproduzir aqui, com grifos nossos.

(...) Como a Providência Divina inseriu a Festa da Visitação de Maria na proximidade de Pentecostes e o próprio acontecimento revela coisas importantes sobre a ação do Espírito Santo, é justo que leiamos o texto do Evangelho (Lc 1, 39-56), também nessa perspectiva. O já mencionado fenômeno sobrenatural de Isabel ter a revelação da verdadeira identidade de sua jovem parenta, mostra a intervenção do Espírito Santo: "Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo" (v. 41). Podemos notar certa analogia entre este acontecimento e uma conversa de Jesus com os discípulos: "Jesus (...) perguntou aos discípulos: 'Quem é que as pessoas dizem ser o Filho do Homem?' (...) 'E vós, quem dizeis que eu sou?' Simão Pedro respondeu: 'Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo'. Jesus então declarou: 'Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne e sangue quem te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu' (Mt 16, 13. 15-17).

Tanto Isabel quanto Pedro não descobriram a verdadeira identidade da pessoa na sua frente por conta própria. Foi lhes revelada. Essa verdade é muito importante também para nós, para admitirmos as nossas limitações humanas em questão de reconhecimento da real identidade de outras pessoas. Com outras palavras, é o Espírito Santo que abre nosso coração e nossos olhos para o mistério do ser humano, para que vejamos nele a criatura amada e adotada por Deus como filho ou filha. Desta maneira somos curados de todo tipo de preconceito.

Anselm Grün, alemão, monge beneditino, autor de vários livros sobre a espiritualidade, num belíssimo – como sempre – texto, ajuda-nos a compreender melhor esse aspecto da Visitação de Nossa Senhora. É o trecho do livro “Festas de Maria” (Editora Santuário, Aparecida – SP, 2009).

Maria transpõe uma alta montanha para chegar até Isabel. Entre nós e o outro frequentemente há montanhas de preconceitos e empecilhos, montanhas de pensamentos que nos impedem de chegar até o outro. (...) Precisamos transpor a montanha de nossos medos e bloqueios e os montes de nosso comodismo para chegar realmente ao outro. Quando tivermos saído de nós mesmos, então conseguiremos aproximar-nos do outro (...). Então encontramos no outro o mistério de Deus que supera sua inteligência. Agora reconhecemos ter encontrado a Mãe de Nosso Senhor. E desse encontro desperta em nós alguma coisa que ajuda a viver. O menino que está em nós pula; no outro, tocamos em nosso âmago. No encontro com o outro, encontramo-nos conosco mesmos, entramos em contato com a origem incorrupta e autêntica do nosso ser. Ao mesmo tempo, num encontro autêntico, abre-se para nós o mistério do outro. Percebemos quem ele é realmente, percebemos que nele a Mãe de Nosso Senhor vem a nós, que o mistério mais profundo do outro é o próprio Cristo. E assim, no encontro com o outro, tocamos no próprio Deus. O encontro autêntico faz os dois tocarem sempre num mistério que os ultrapassa: liberta densidade e presença, a ponto de o próprio Deus tornar-se experimentável. (p. 73-74)

terça-feira, 31 de maio de 2011

Próximos passos de uma Caminhada



Como todos já sabem, este fim de semana (29/05) foi articulado uma Caminhada por uma Educação sem Homofobia. Há alguns pontos muito pessoais que gostaria de dividir, por ter muita crença de que valem à pena irem à luz.

Existe uma prerrogativa Cristã bem conhecida de todos nós que diz: "Ninguém acende uma lâmpada e a cobre com um vaso ou a põe debaixo da cama; mas a põe sobre um castiçal, para iluminar os que entram". Posso concluir que depois de 5 anos de existência do grupo Diversidade Católica, dos quais 2 anos e uns quebrados eu faço parte, afirmo seguramente que ele saiu do armário definitivamente. De peito aberto, com cara, camisa e coração cristão dando lições, deixando um rastro de aprendizagem e alegria que valem a pena serem espalhados, assim como o exemplo da tal vela que ganha um castiçal.

A ideia do ato de Domingo começou com a típica fala Carioca, já que tá todo mundo indignado “vamos fazer alguma coisa, que tal uma caminhada protesto?”. Rapidamente, algo em torno de 3 horas, a ideia tipicamente carioca e sem inércia do “vamos fazer...”, ganhou corpo e vida própria. No FB e no Twitter as pessoas já compartilhavam a ideia de Domingo, no dia seguinte na quinta uma nota no O DIA e na A CAPA do UOL, sexta já estava no Mix Brasil. Sábado, foi arrematado com uma belíssima entrevista de praticamente 20 minutos na CBN RIO, pela Juliana Luvizaro, a Zu. Daí abriu portas pra outros muitos veículos de comunicação. Ou seja, a onda de revolta realmente foi abraçada por todos aqueles que se dignaram de alguma maneira a fazer algo e colaborar para que a luz do castiçal ficasse cada vez mais visível a todos e a mais gente.

Há uma participação que não pode de maneira nenhuma deixar de destacar, a da Comunidade Betel que abraçou tanto quanto nós a causa em todo o processo desde quarta-feira, no inicio de tudo.

Aqui no Blog do DC gostaria de enfatizar o que disse pessoalmente a galera da Betel - a Caminhada foi a primeira de muitos encontros. Então meus caros irmãos em Cristo, quando neste domingo demos as mãos, mostramos de uma forma muito prática uma fé rica e cheia de ações, provamos que ser Igreja é mais que simplesmente uma delimitação espacial feita por templos. Provamos e manifestamos um cristianismo político, sim, porque quem disse que pelo fato de sermos cristãos não podemos ter uma postura política diferenciada? O que difere bastante, por exemplo, da famosa bancada evangélica e católica que veste a política, alias a politicagem, numa falsa e anti-ética roupagem cristã. Aquilo não é cristianismos e foi também contra aquilo que fomos protestar. Sim, somos cristãos com muito orgulho, nos unimos, evangélicos e católicos por crer que nossa postura política pode ser diferente dos estábulos que alguns deputados e senadores ocupam em Brasília.

Além de crermos que todos tem o direito a pertença religiosa, pois Deus não faz acepção de pessoas, já dizia o cartaz da Betel na Caminhada, deixamos neste domingo uma lição que dá um banho em muitas denominações e lideranças católicas e evangélicas, demos uma contribuição moral e cível que sem dúvida somente nós, os cristãos LGBTs podemos dar às Igrejas. Mas, principalmente, provamos na prática a regra mais fundamental e básica do cristianismo, o exercício prático do amor. Fomos fundo naquilo que concerne a nossa pratica religiosa, ou seja, fomos fraternos e agimos na caridade.

Mais uma vez amigos da Betel, temos que ir mais longe nesta Caminhada, fazer convergir mais nossos caminhos, fazer ecoar nosso grito e levar luz aos corações que precisam.


Veja aqui a repercussão da Caminhada e onde nossa voz chegou:

Folha de São Paulo
R7
Agencia Brasil
Clica Brasilia
Diário de Pernambuco

"Ide a todas as nações, até os confins da terra"


Muitos como eu, nestas últimas semanas, foram tomados por um profundo sentido de tristeza e de cansaço. Esse estado de ânimo e de coração me levou a reencontrar um trecho que me havia tocado muito durante a primeira leitura do "Journal d'un théologien", de Yves Congar. Ali, o autor relata como, no início do outono de 1956, depois de ter passado os anos anteriores tentando conservar o direito de publicar e de ensinar, se encontrou "exilado" em Cambridge. Lá, fez a experiência de um total abandono e desencorajamento. Foi pressionado por um imenso sentimento de solidão, de impotência, de inutilidade, até chegar a pensar que a sua vida era um fracasso total.

Assim, um dia, durante uma caminhada sob o céu cinza e baixo daquele terrível fine english weather, como dizem os nossos amigos britânicos, deixou-se cair debaixo de uma árvore e, na chuva sutil e incessante, "encontrou-se a chorar amargamente (...) Dominus autem assumpsit me: estas lágrimas, Deus não as sentirá?". Esse homem tem 52 anos, é um dos teólogos mais brilhantes do seu tempo, resistiu à prova da prisão na Alemanha e agora se reduzia às lágrimas e à sensação do fracasso. Sim, a Igreja pode fazer sofrer, pode fazer sofrer cruelmente os melhores dos seus filhos e das suas filhas.

Se me detenho sobre esse episódio da vida de Yves Congar, é porque o período da vida da Igreja em que ele se situa talvez tenha semelhanças com o nosso – ou pelo menos é essa a esperança que eu alimento.

O ano de 1956 é o fim do pontificado de Pio XII, um período em que parece, então, segundo todos os observadores, que a Igreja católica esteja em pleno "enrijecimento" doutrinal e disciplinar. Há quase dez anos, as condenações chovem sobre os pesquisadores, sobre os teólogos, sobre iniciativas como a dos padres operários na França. É novamente uma espécie de grande crise antimodernista que percorre a Igreja, absolutamente distanciada do impulso de liberdade e de energia que conquistou os povos com o fim da guerra.

Por que lembrar o futuro cardeal Congar em lágrimas debaixo da macieira? Porque, justamente, ele não sabe – e ninguém sabe – que ele será chamado a desempenhar um papel de primeiríssimo lugar no Concílio Vaticano II, ao qual ninguém ainda sabe que ele será convocado. Esse homem acredita que sua vida está acabada, enquanto, ao invés, está por começar. Esse homem acredita que o seu trabalho intelectual esteja perdido, e, pelo contrário, está só sepultado, como o grão de trigo semeado na terra, e ninguém suspeita a colheita que ele ainda dará.

Nestes tempos de aflição, volto-me ao padre Congar e relembro que o tempo das lágrimas também deve ser o tempo da semeadura.

Não é um erro chorar pelo espetáculo da nossa Igreja que parece enrijecer-se, pelo menos nos posicionamentos de alguns dos que pertencem à hierarquia. Seria um erro abandonar, deixar que tudo se perdesse. A Igreja católica não pertence a Roma, pertence a Cristo, que é a sua cabeça, pertence a nós que formamos o seu corpo.

Nessa perspectiva, os problemas suscitados pelo padre Congar – lugar dos leigos, colegialidade, diálogo ecumênico... – ainda são atuais, porque são o meio de tornar o grande corpo da Igreja vivo e em comunicação. Em comunicação com o mundo para lhe anunciar o Evangelho, para fazer ressoar o tambor da Boa Nova. Mas há novos desafios; mundialização, divisão dos recursos da terra, defesa do ambiente. É preciso levantar os olhos. Nem as perguntas nem as respostas se encontram nos missais. E nem nos dogmas. Talvez estejam no trabalho da inteligência e do amor, se aceitarmos fazê-lo.

Eu não proclamo um otimismo beato, nem uma Esperança relegada ao fim dos tempos. Hoje, nesta mensagem, cultivo uma esperança razoável: a de que a crise em que nos encontramos é o prelúdio de um grande sopro de renovação, talvez o segundo sopro daquele Concílio tão denegrido, quase condenado por alguns, enquanto a sua atuação apenas começou, enquanto apenas nos demos conta do tesouro que os padres conciliares nos deixaram.

Por isso, será preciso conseguir despedaçar a grande loucura egotista que nos atravessa para nos tornarmos de novo verdadeiramente católicos. Porque é isso que está verdadeiramente em jogo, voltar à fonte da nossa catolicidade, isto é, à vocação universal. "Ide a todas as nações, até os confins da terra...", eis a nossa identidade. Nós, católicos, não nos situamos na lógica de um pequeno resto de puros e poucos que deveriam resistir heroicamente a um mundo hostil. Somos mestiços, cidadãos do céu e da terra.

Sim, até choramos, mas depois enxugamos as lágrimas e nos ocupamos do que nos compete: isto é, a tarefa que Deus nos confia, a preocupação e o cuidado da humanidade inteira.

- Pietro de Paoli, escritor e autor de "La Confession de Castel Gandolfo" (Editora Plon, 2008)
Artigo escrito para o jornal La Croix, 12-04-2009 :-)
Tradução de Moisés Sbardelotto. Reproduzido via IHU com grifos nossos.

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